Abra as páginas de um dicionário qualquer e busque pelo vocábulo confiança. Estará lá algo como: crédito, boa fé, segurança, bom conceito etc. Mantenha a página aberta e facilmente encontrará o verbo confiar: ter fé, ter confiança, ter esperança em alguém ou algo. Respire um tanto aliviado. Ufa! A confiança ainda existe, pelo menos ali.

Quando eu era criança, numa cidade dessas qualquer do interior do Brasil, a confiança era uma moeda de troca muito em uso. Havia quem confiasse a chave de casa à vizinha. Pais confiavam a educação formal de seus filhos e filhas a professores e escolas – a maioria delas públicas, aliás. O cidadão estacionava a bicicleta na porta de uma lanchonete, enquanto lanchava, de um banco, enquanto depositava dinheiro ou pagava contas, confiando que ninguém, a não ser o próprio, sairia dali montado nela. Exceções existiam, mas, em linhas gerais, confiava-se muito mais em tudo e em todos.

"Você precisava ver na nossa época", rivalizam os parentes mais velhos. Comprava-se fiado nas mercearias e a caderneta de anotações, que precedeu em muito o cartão de crédito, valia como palavra de honra. Palavra de honra, aliás, tinha serventia mesmo. Falou, estava falado. Os contratos sociais invisíveis que as pessoas teciam todos os dias entre si eram assinados pelo tinteiro do compromisso. Ninguém vinha pedir ao pai a mão da filha em casamento sem a intenção verdadeira de casar-se. As exceções aqui eram quase invisíveis a olho nu.

Não dá para saber, exatamente, em que ponto a sociedade foi perdendo isso. Porém, as variáveis coletivo e individual estão de alguma forma colocadas a núcleo desse contexto. A coletividade favorece a necessidade de confiar. Quando se raciocina em torno de um bem comum para uma comunidade, uma instituição, uma empresa, por exemplo, é quase obrigatoriedade trafegar pela via da confiança. Via de mão dupla: é preciso confiar e ser confiado. É nessa circunstância que ela se avoluma. O individualismo, por outro lado, como processo de pensar demasiado em si próprio e em ganhos que se estendem, no máximo, a um grupo restrito, faz com que as pessoas passem a confiar cada vez menos umas nas outras e a se trair mutuamente – pois, via de regra, quase todas estão dispostas a obter vantagem sobre as demais quando o crescimento isolado é celebrado como virtude máxima.

Já não se conhece o vizinho pelo nome, às vezes, sequer pela fisionomia. E o pior de tudo: não se deseja conhecer. Pais estão cada vez mais desconfiados das escolas dos filhos; escolas estão cada vez mais desconfiadas dos pais. As relações sociais cada vez mais judicializadas. Bicicletas sem cadeados são inconcebíveis, mesmo no próprio bairro. Depositar confiança nas urnas? Nem pensar. Eleição e confiança caminham em perfeita desarmonia. Elege-se o "menos pior". Minguam-se as exceções, quase tudo isso é regra.

Não tem jeito: ou se dá um sentido mais coletivo às aspirações humanas ou será preciso fuçar o velho dicionário toda vez que for necessário acreditar que a confiança existe – e correndo o risco de, ao fechar as páginas, imediatamente, voltar a desconfiar da própria sombra.

ISOLDA HERCULANO é escritora e jornalista em Londrina

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