Difícil travessia política

Sabemos que há várias cidades na cidade, porém, não podemos permitir que uma parte da população seja ignorada



Nesta fase de crises, é preciso pensar a travessia diante das articulações possíveis entre a democracia representativa e a participativa. Isso para redefinir a função dos atores, sujeitos envolvidos nos territórios onde vivem, sejam eles urbanos ou rurais. Para esses atores, já não basta pensar, identificar os problemas, problematizá-los, mas também propor soluções. Não basta estarem atentos, compreenderem como as situações acontecem em seu território, mas atuar nele como atores críticos de organização, mobilização e de efetiva ação.

Este comportamento cidadão possibilita uma aproximação política entre a teoria e a ação; mais que isto, permite um roteiro interpretativo que evidencia as transformações necessárias, com um teor maior de consciência e organização. A análise de Boaventura de Souza Santos parece pertinente para argumentar a nossa preocupação; diz ele que não podemos permitir que nas cidades se estabeleçam "zonas civilizadas" e "zonas selvagens", pois isto é uma forma de conceber um fascismo social.

Sabemos que há várias cidades na cidade, porém, não podemos permitir que uma parte da população seja ignorada, nem podemos admitir que o poder público local estabeleça suas ações apenas nas zonas civilizadas, atendidas com todas as benesses da modernidade, enquanto, de outro lado, nas zonas selvagens, há baixo nível de organização e quase nenhuma presença do poder público local. As zonas elitizadas "civilizadas", expressamente hoje manifestas em seus condomínios, horizontais e verticais, além das condições materiais dos atores endinheirados, não podem ser fortalecidas como a única forma possível de viver nas cidades distante da violência, dos perigos, dos riscos urbanos e da ausência do Estado.

Determinar esse privilégio é admitir que os pobres trabalhadores, desempregados e alguns segmentos médios não podem participar de forma civilizada em uma cidade planejada, organizada, colaborativa, segura, bela e sustentável. Se nos próximos anos assim procedermos, poderemos instalar definitivamente uma cidade de exceção, uma cidade perigosa, onde a mobilidade e a locomoção interna serão a cada dia mais problemáticas. Portanto, não se trata apenas de forma, mas fundamentalmente de conteúdo, um conteúdo construído e vivenciado pela população. Este construído no diálogo coletivo, que pode e deve ser construído diferentemente entre as diferentes zonas urbanas, construído com as características de sua identidade. Não há como admitir uma urbanização desigual, que gera um urbanismo excludente, como denunciava Milton Santos; antes, temos que pensar formas de articulação deste território.

Necessitamos pensar a cidade como um todo, com suas diferenças, peculiaridades culturais, buscar unidades possíveis no respeito à diversidade, para uma convivência necessária. Não há muitas alternativas; ou começamos já este planejamento ou corremos o risco de em poucos anos ver a cidade fragmentar-se de tal forma em que qualquer nível aceitável de sociabilidade e cidadania democrática se tornará impossível.

Há um trabalho intelectual crítico importante a ser feito. Entender a cultura dominante e contrapor com as formas como o povo pensa e vive, e a partir dessa influência conhecer a sua subjetividade e sua objetividade, como se interpenetram as culturas dominantes com a cultura popular. Trata-se de credibilizar os discursos e as práticas que se densificam no cotidiano. Cotidiano este palco onde ocorre a vida, organizam seu território e, destas observações, possam construir explicações inteligentes, que possam orientar as políticas e as ações correspondentes.

PAULO BASSANI é sociólogo e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e GABRIEL BARBOSA BASSANI é estudante de Geografia

As reformas e a ilha da fantasia



Nesse momento em que o governo tenta aprovar a reforma trabalhista, luta pela explosiva reforma da previdência e patina no desaparelhamento político das repartições públicas, a Câmara dos Deputados trabalha em sentido contrário. Prepara expedientes que reduzem os cargos em comissão do funcionalismo efetivo, trocando-os por contratados sem concurso. A justificativa é que dos 3.124 servidores efetivos, 1719 acumulam funções gratificadas e isso seria um exagero, pois alguns que são chefes de si próprios e outros, mesmo em estágio probatório, já acumulam comissão.

Além dos 3.124 servidores concursados, a Câmara ainda registra em sua folha 11.792 ocupantes de cargos de confiança. Os efetivos recebem salários entre R$ 15.035 a R$ 28.801 mais comissões que vão de R$ 3.500 a R$ 9.430. Os cargo de confiança ganham entre R$ 936 e R$ 18.172. Justifica-se que as mudanças pretendidas não aumentarão o desembolso com pessoal, que permanecerá o mesmo, apenas com nova distribuição.

Quanto à forma de divisão, é poder discricionário da casa legislativa. Mas o valor dos salários pagos, de até R$ 38 mil mensais, é muito diferente do que recebem os trabalhadores brasileiros, mesmo os de boa remuneração no mercado. O número de servidores também espanta. São 14.916, para servirem a 503 deputados, ou seja, quase 30 por parlamentar. Imagina-se que não caberiam no prédio se todos resolvessem, um dia, comparecer à Câmara ao mesmo tempo.

É inegável que o parlamento tem atividades de alta complexidade e exige pessoal para desenvolvê-las. Mas tudo deve ter um limite e guardar certa similaridade com o mercado. Os números relativos ao funcionalismo da Câmara dos Deputados, sem duvida, afrontam o Brasil e a sua massa de empresários e trabalhadores, que pagam os impostos para sustentar as instituições. Em vez de buscar mais cargos para acomodar seus cabos eleitorais, os parlamentares deveriam ter mais preocupação em conseguir, na medida do possível, desonerar a Casa para torná-la mais compatível com as empresas e instituições que são obrigadas a produzir para obter os recursos que empregam em seu funcionamento e manutenção. Quando o governo pede o esforço do empresariado e da população, os trabalhadores são atropelados pela amarga reforma previdenciária, Brasília deveria também se esforçar e abrir mão de sua condição de ilha da fantasia. Afinal, o seu sustento vem de todos os quadrantes do país. Executivo, Legislativo e Judiciário também precisam cortar as suas gorduras...


TENENTE DIRCEU CARDOSO GONÇALVES é dirigente da ASPOMIL (Associação de Assistência Social dos Policiais Militares de São Paulo)


A necessária reforma e a simplificação das regras do PIS e da Cofins



O presidente Michel Temer anunciou recentemente que até o final de março será publicada uma medida provisória para simplificar as regras do Programa de Integração Social (PIS) e até o fim do primeiro semestre haverá uma outra MP para tratar da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Essas ações da equipe econômica do Governo Federal revelam que o país iniciará uma reforma no seu sistema tributário.

E está mais do que na hora de promovermos uma simplificação no sistema tributário brasileiro. Não há controvérsia a respeito, nem dos economistas, dos políticos, da classe contábil, dos empresários. Mesmo que de maneira fatiada, se faz necessária a reforma tributária.

Vale ressaltar, inicialmente, que a sistemática do PIS e da Cofins é, além de altamente complexa, uma fonte quase inesgotável de disputas, nas esferas administrativa e judicial, entre a Receita Federal e os contribuintes. Nossos tribunais, em todas as instâncias do Poder Judiciário, estão abarrotados de processos que discutem o que gera e o que não gera direito ao chamado "crédito" de PIS e Cofins.

O regime de não-cumulatividade, implantado a partir de 2003 (PIS) e 2004 (Cofins), gera graves distorções no processo produtivo e penaliza, na grande maioria das vezes, o exportador – e a competitividade internacional do Brasil –, pois não há um sistema que garante a efetividade das políticas de ressarcimento dos créditos ao exportador, de todo o custo incorrido na cadeia produtiva.

É válido destacar que se era para ser somente "simples", o regime cumulativo, com alíquotas expressivamente menores, vigentes até 2003/2004, era perfeito. Ocorre – e ainda temos resquícios dessa cumulatividade, mesmo no regime de "não-cumulatividade" – que o regime anterior era absurdamente inflacionário e injusto.

Universalizar o regime de "não-cumulatividade", impondo-o a todos os segmentos produtivos, inclusive serviços, vai encarecer o custo dessas empresas, que não têm direito a créditos significativos. Isso porque sua matéria-prima é a mão-de-obra, que, em síntese, é a base do valor agregado. Esse processo vai gerar, num primeiro momento, um pequeno surto inflacionário, pois não há como não transferir esse custo adicional para os preços.

Uma boa medida – e, portanto, imperiosa – seria acabar com todos os regimes especiais de tributação nessa área: os incentivos e desonerações setoriais, como das empresas de rádio e televisão, os produtos da cesta básica, REIDI, REPORTO, REINTEGRA, além de mais de uma dezena de outras distorções do sistema.

Outra discussão importante na reforma do sistema são as alterações necessárias do ICMS. Infindáveis projetos legislativos que tramitaram – e ainda tramitam – no Congresso Nacional sobre o tema foram debatidos, mas nunca progrediram. A questão não é técnica, é política. Não se trata de mudar a legislação, mas mudar o regime de poder dos governadores dos estados. Não há reforma tributária que envolva os estados da federação, sem um prévio pacto político, cuja costura é um dos maiores desafios de qualquer reforma tributária.

Quando será que o Brasil vai realmente perseguir um regime tributário que incida sobre o consumo de forma quase universal? A saída mais saudável seria a implantação do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), que a esmagadora maioria dos países já implantou há muitos anos – inclusive nossos vizinhos latino-americanos – que incide uma única vez, na venda ao consumidor final.

Quando vamos acabar, realmente, com a complexidade do nosso sistema tributário sobre o consumo? Sempre que se fala em simplificar e universalizar o sistema tributário, o que vem a seguir é uma legislação ainda mais esdrúxula e quase sempre com aumento da carga tributária, objetivo sub-reptício de toda proposta de ‘simplificação’ do sistema tributário. Não é por outro motivo – minirreformas – que o sistema tributário brasileiro é taxado como um dos piores do mundo. Urge tratar do assunto com a atenção que merece, temos que discutir ‘toda’ a estrutura tributária e não sempre fazer remendos que só pioram as coisas.

Entretanto, não parece ser saudável, para o regime democrático, que uma reforma que envolva os principais tributos indiretos – PIS, Cofins e ICMS – seja feita por meio de Medida Provisória. A tramitação de uma MP é extremamente curta – 120 dias – se considerarmos a complexidade técnica, e especialmente política, que uma mudança nesses três tributos causa, tanto no mundo empresarial corporativo, para os profissionais da área jurídica e contábil, no impacto nas cadeias produtivas dos inúmeros segmentos da agropecuária, da indústria e do setor de serviços.

Portanto, o envio de projetos de lei parece o instrumento mais adequado para o debate, a análise dos efeitos das medidas propostas, a mensuração dos seus impactos, tanto no universo empresarial e concorrencial quanto os efeitos na arrecadação da União e dos Estados.

ENIO DE BIASI é diretor da DBC Consultoria Tributária

■ Os ar­ti­gos de­vem con­ter da­dos do au­tor e ter no má­xi­mo 3.800 ca­rac­te­res e no mí­ni­mo 1.500 ca­rac­te­res. Os ar­ti­gos pu­bli­ca­dos não re­fle­tem ne­ces­sa­ria­men­te a opi­nião do jor­nal. E-­mail: opi­niao@fo­lha­de­lon­dri­na.com.br