"Nada é tão intransponível quanto um muro imaginário." A frase da poeta Líria Porto dá conta de explicar um pouco os boatos que envolveram a apresentação da performance "DNA de DAN", do artista curitibano Maikon K, no último sábado (14/10). A polêmica se faz menos em torno de fatos que dos equívocos retroalimentados por suposições – os tais muros imaginários - ou por puro oportunismo político – esta outra muralha nos limites das quais querem nos trancafiar.

Quem esteve no palco do Lago Igapó viu uma silhueta humana paralisada, dentro de uma bolha translúcida, a metros de distância, compondo o cenário com a natureza e a cidade ao fundo. Muitos pensaram que fosse um boneco. Outros se questionavam se seria um homem ou uma mulher. Maikon manteve-se por três horas absolutamente parado, com o corpo recoberto por uma substância que se solidifica (uma segunda pele), no interior do ovo inflável que tem sete metros de uma ponta a outra.

A bolha estava no centro do imenso palco (que tem 25x40 metros), onde foi interditada a circulação de pessoas não autorizadas. A imagem poderia impressionar pelo inusitado desse "humano in vitro" quase navegando nas águas turvas de Londrina (e o susto é uma das funções da arte), mas não pelo suposto "ato obsceno", observado por uma cidadã que denunciou a ação artística à Polícia.

A performance conseguiu chegar ao fim sem maiores prejuízos por três fatores: a abordagem respeitosa da PM; a conduta responsável do Festival de Dança; a atuação da centena de espectadores, que, em mutirão, abraçou o artista e o retirou do local em um cordão que será historicamente lembrado como manifestação pacífica em defesa da liberdade de expressão. E não seria diferente em uma cidade como Londrina, com o imenso público que defende a cultura como parte de seu próprio DNA.

Maikon K concebeu "DNA de DAN" para espaços abertos e já o apresenta há 4 anos pelo País, inclusive em locais de grande circulação, como praças, ruas e pontos turísticos. Mesmo assim, pensando na preservação de todos – inclusive dos que não queriam ter contato com a performance -, o Festival de Dança de Londrina, de posse de toda documentação liberatória, dispôs pessoas da produção durante as quatro horas a distância de 15 metros em ambos os lados da via de caminhada para informar sobre o conteúdo artístico e oferecer rotas alternativos de passagem. Seguranças interditaram o palco. Não se permitiu em nenhum momento a proximidade de crianças ou adolescentes neste espaço isolado.

Na última hora de apresentação, quando começa a dança-ritual e pessoas que se prontificaram podem adentrar a bolha, foi rigorosamente observada a classificação para maiores de idade.

Toda denúncia ou especulação que passe ao largo destes fatos precisam ser comprovados, inclusive em juízo. Calúnia, difamação, ataque à liberdade de expressão, incitação pública à violência e linchamento virtual são, além de crimes, atitudes um tanto quanto avessas à "moral", à "família" e aos "preceitos cristãos" vociferados por parte dos detratores ao longo destes dias.

Na mesma semana em que uma mulher foi assediada em um ônibus do transporte público, ante o barulhento silêncio da maior parte dos mesmos acusadores, soa, no mínimo, chocante os focos voltados para um espetáculo nestes moldes.

Com 15 anos de uma história ilibada de luta pela democratização no acesso à cultura, com um público recorde de mais de 20 mil pessoas só este ano, o Festival de Dança de Londrina faz votos de que as muralhas reais ou imaginárias, erguidas pela desinformação ou pelo oportunismo, sejam transpostas em favor do humanismo ou simplesmente pelo esforço à reflexão, que, em pleno 2017, deveria ser o norte da nossa postura num mundo já tão arrasado pela intolerância.

DANIELI PEREIRA é coordenadora-geral do Festival de Dança de Londrina

■ Os ar­ti­gos de­vem con­ter da­dos do au­tor e ter no má­xi­mo 3.800 ca­rac­te­res e no mí­ni­mo 1.500 ca­rac­te­res. Os ar­ti­gos pu­bli­ca­dos não re­fle­tem ne­ces­sa­ria­men­te a opi­nião do jor­nal. E-­mail: opi­niao@fo­lha­de­lon­dri­na.com.br