Foi no dia 12 de maio de 2008 que o biólogo americano Jason E. Bond chegou à conclusão que aquela aranha encontrada na região sudoeste dos EUA e também no norte do México ainda não havia sido classificada. Era uma aranha que apresentava um comportamento marcado pela sua capacidade de construir tocas complexas escavando o solo. Essas tocas são ao mesmo tempo abrigo e proteção como também servem de armadilhas para os pequenos insetos dos quais a espécie se alimenta.
Uma fêmea de Myrmekiaphila neilyoungi, inofensiva e famosa.
Uma fêmea de Myrmekiaphila neilyoungi, inofensiva e famosa. | Foto: Wikimedia Commons/ Reprodução

Ao escolher um nome para batizar a espécie Bond quis homenagear o compositor, cantor folk e ativista Neil Young. Desde, então, a aranha passou a ser conhecida como Myrmekiaphila neilyoungi. Ela não representa perigo, pois não é venenosa para seres humanos. Com um diâmetro que varia em torno de 2,5 cm ela também costuma tampar suas tocas com uma membrana de seda que ela fabrica com sua teia, ampliando assim a segurança de seus esconderijos. Até então o único nome do panteão roqueiro que havia sido homenageado assim era Roy Orbson, que deu nome a uma espécie de besouro chamada Orectochilus orbisonorum e que aqui no Brasil talvez classificássemos como barata d’água.

Essas duas referências são as mais institucionalizadas entre a ciência que estuda os insetos em suas relações com os seres humanos e o meio ambiente e o universo do rock. No entanto, existe uma profusão de outros momentos nos quais a presença dos insetos povoa esse imaginário. A começar pela banda mais conhecida do planeta – Beatles é uma corruptela da palavra beetle, que significa besouro. Também a banda que acompanhava Ziggy Stardust, alterego de David Bowie em uma das suas fases mais criativas se chamava “Spiders From Mars” (aranhas de Marte). O The Who também marca presença nessa lista com “Boris The Spider”, composta pelo baixista da banda, John Entwistle e lançada em 1966 no álbum A Quick One.

Um dos momentos mais luminosos da carreira de Frank Zappa foi imortalizado no álbum Zoot Allures, de 1976. Um dos grandes méritos de Zappa foi o seu sempre habilidoso senso de equilíbrio entre uma abordagem experimental que dialogava com a ponta de sua formação erudita de vanguarda ao mesmo tempo em que transitava numa dimensão mais próxima de um apelo popular própria do rock’n roll. A sonoridade de Zoot Allures é exatamente assim. É um clássico absoluto que pode tranquilamente frequentar set lists de rádio até hoje.

Neil Young, o homenageado pelo nome da espécie de aranha
Neil Young, o homenageado pelo nome da espécie de aranha | Foto: Wikimedia Commons Gorupe de Besanez

( Vejo o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=n2MtEsrcTTs)

E uma das faixas que mais representa essa marca é The Torture Never Stops, cuja letra começa falando de moscas varejeiras que voam erráticas por uma sala de tortura numa masmorra medieval (Voam varejeiras zumbindo em sua masmorra de desespero). A faixa chama atenção numa primeira audição por conta da participação da mulher de Zappa e de uma amiga dela que duelam com os solos aracnídeos de Zappa na base de sussurros, gritos e gemidos não necessariamente advindos de uma sessão de tortura.

Ainda no domínio desse imaginário, Tim Buckley em sua obra-prima, o álbum Happy-Sad de 1969, traz uma segunda faixa dedicada às moscas que zumbem: Buzzin’ Fly é um crossover entre Jazz, psicodelismo e Folk Music que Buckley sempre dominou. A melodia que é reforçada pelos solos de guitarra de Lee Underwood mimetisa o zumbido da mosca em seu voo. Num contexto brazuka, essa presença está na letra de Semanas Astrais do grupo Secos & Molhados (“O verme passeia, na lua cheia”) e em Bichos Escrotos dos Titãs.

Evidentemente que essa é uma lista ligeira, feita assim de cabeça. Uma pesquisa mais apurada renderia no mínimo um mapa das imagens cujo tema é a vida dos insetos no rock e para além seria uma chance de ampliar filosoficamente o debate trazendo para a brincadeira a leitura que, por exemplo, Gilles Deleuze fazia dos carrapatos como seres que podem ficar muito tempo em sua fase de latência na natureza. Deleuze adorava bichos assim – sua obra é atravessada por insetos assim como o rock (e ele gravou algumas faixas lendo coisas de Nietzsche enquanto seu amigo guitarrista do Heldon, Richard Pinhas desdobrava suas escalas como teias).

Numa camada arqueológica ainda mais profunda da relação com os minúsculos seres com os quais dividimos o planeta e o que de melhor se produziu em termos de música de massa nos últimos 50 anos está um acidente inofensivo que aconteceu no laboratório de uma gigante da indústria farmacêutica em seu laboratório na Basiléia, Suíça. Albert Hofmann fazia experiências com uma nova substância que havia sintetizado a partir de um fungo. Ao diluir o seu Ácido Lisérgico Dietilamida numa base de açúcar, o pesquisador oferecia o composto para aranhas e depois observava a alteração dos padrões nos desenhos das teias.

Por acidente ele pode ter lambido a colher com que servia as aranhas ou então a substância pode ter sido absorvida pelo contato com a sua pele. O que aconteceu a seguir foi que Hofmann começou a sentir os efeitos a caminho de casa com sua bicicleta. Nascia assim a primeira “viagem psicodélica” – ainda era abril de 1943.

Na década seguinte, o escritor Aldouls Huxley vai popularizar o tema em seus livros (Moksha e As Portas da Percepção). Este último livro servindo de referência para Jim Morrison e Ray Manzarek escolherem The Doors como nome para sua banda já nos psicodélicos anos 60.

Aliás, o criador do termo psicodélico foi Humprhy Osmond, com quem Huxley se correspondia (as cartas estão reproduzidas em Moksha, recentemente traduzido e lançado pelo selo Biblioteca Azul da Globo Livros). Lá no seu horizonte de origem o rock psicodélico está de alguma maneira vinculado à imagem das aranhas muito doidonas de Hofmann.

Alguma coisa nesse mundo de minúsculos seres nos aguça a percepção e a curiosidade apenas pela sua imagem. Matéria prima com a qual se constrói as abstrações. O detalhe elevado à categoria de ornamento. A beleza habita nos detalhes. Falar sobre a misoginia e homofobia de “O Rock das Aranhas” de Raul Seixas eu deixo para outro alguém em seu devido lugar de fala.

Moksha, Aldous Huxley. Tradução: Adriano Scandolara – 484 páginas.
Moksha, Aldous Huxley. Tradução: Adriano Scandolara – 484 páginas. | Foto: Globo Livros divulgação

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