Temos uma relação idealizada com o tempo, especialmente com o passado. Na literatura talvez quem melhor explorou essa condição foi o escritor francês Marcel Proust, autor do célebre trecho de “Em Busca do Tempo Perdido” no qual uma Madeleine (bolinho típico da culinária francesa) dispara uma torrente de lembranças em seu narrador, transportando-o até a sua infância numa cena na qual ele se lembra da calçada de petit paver onde costumava brincar comparando as pedras do calçamento com a Madeleine que ele agora saboreia mergulhada no chá. Essa mesma capacidade de evocar o tempo como uma potência que se desdobra como signo e sentido naquilo que a arte recorta do mundo é algo por demais presente ao longo de toda a discografia do Durutti Column. “Time Was Gigantic... When We Were Kids”, originalmente lançado em 1998 ganhou agora uma remasterização e foi ralançado com um bônus de cinco faixas inéditas.

Relançamento do Durutti Column também saiu em vinil duplo
Relançamento do Durutti Column também saiu em vinil duplo | Foto: Divulgação

Jornalismo cultural se faz com obsessões e divinas coincidências, principalmente no que toca às efemérides (datas especiais). Nesse sentido os acontecimentos são epifanias (revelações). Hoje estamos numa sexta-feira dia 14 de julho. A data lembra exatamente a figura do anarquista espanhol Boaventura Durruti, que nasceu no dia 14 de julho de 1896. O grupo de seguidores que o acompanhava foi batizado com o nome de Coluna Durruti – referência a qual selou o nome do projeto da banda do guitarrista Vini Reily com uma pequena corruptela na repetição das consonantes “r” (no nome original) e “t” no nome da banda. Qual a relação entre o anarquista espanhol e a banda de um homem só de Manchester? Esse nexo se encontra precisamente na sonoridade da guitarra proustiana de Reily.

Antes do Durutti Column, Vini Reilly tocou em uma banda punk chamada Ed Banger and the Nosebleeds. Morrissey do The Smiths também passou por esse mesmo grupo num outro momento com uma outra formação. Reily se encantou com um violão que comprou por 12 libras e resolveu desapegar da estética punk. Largou tudo e passou a desenvolver uma outra sonoridade na guitarra que em muito evoca um clima que lembra a musicalidade do flamenco. Um flamenco, é claro, atravessado por momentos jazzísticos e, principalmente, por uma divisão rítmica própria do minimalismo. É essa relação com o flamenco que levou Reily a ser um possível precursor do que mais tarde viria a ser chamado de pós-punk. Daí o nome da banda criar uma simbiose entre uma sonoridade flamenca e ao mesmo tempo conservar algo de uma referência no punk ao homenagear o anarquista espanhol Boaventura Durruti. A medula do punk sempre foi um programa político anárquico.

“Time Was Gigantic... When We Were Kids” é um trabalho que resistiu há 25 anos e soa hoje como algo atemporal. Talvez porque o disco seja uma marco de uma outra virada na carreira de Vini Reilly. Diferente dos trabalhos anteriores do Durutti Column, o disco de 1998 marca uma aproximação com uma estética mais pop. Os críticos costumam emparelhá-lo com Heaven Or Las Vegas do Cocteau Twins. O clima geral do disco é uma atmosfera etérea mas traduzida para um contexto no qual esse clima se torna um habitante possível de pubs, pistas e ambientes de socialização para além da introspecção que era a dimensão fundamental dos primeiros trabalhos da banda.

Hoje Vini Reilly não toca mais por conta dos derrames que enfrentou em 2010. Está com 69 anos de idade. Seu legado é o que de melhor os anos 80 e 90 do século XX produziram. Algumas figuras importantes da cena pop e rock não economizam nos adjetivos. John Frusciante do Red Hot and Chilly Peppers o considera “o maior de todos os guitarristas”. Também estão na lista de admiradores nomes como os de Brian Eno e Robert Fripp. Para quem já conhece vale a pena sempre lembrar. Para quem nunca ouviu é a chance de uma grande descoberta que esse relançamento coloca em pauta mais uma vez. É para ouvir comendo madeleines mergulhadas no chá.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.