Acabou de sair para download e deve chegar em breve às plataformas de streaming “Multiplicities – A Repository of Non-Existent Objects II” do nova-iorquino John Zorn. O trabalho, que também pode ser encontrado em formatos mais tradicionais como o CD, fecha um dístico junto ao primeiro volume que saiu no ano passado. Cada composição é batizada com um conceito ou noção do autor de Diferença e Repetição e Lógica do Sentido.


O resultado é uma combinação de serialismo com improvisos que o ouvido do jazzófilo brasileiro já está habituado a encontrar nos cipoais sonoros de Hermeto Paschoal ou até nas intrincadas sinfonias urbanas dos irmãos Barnabé. A tensão entre diferença e repetição como um drama musical que se atualiza no sentido que o ouvinte capta com a respiração de seus ouvidos. A música é como uma troca gasosa que se executa nos alvéolos do espírito. É no âmago de quem a ouve que o som toca o sangue que passa a pulsar em uníssono com o ar em movimento. Panta rei (πάντα ῥεῖ) – tudo vibra. Heráclito ou a vontade de se dissolver no universo.


Porque pensar também se faz com música. É o que Deleuze e Félix Guattari propõem nas páginas de “O Que é a Filosofia?”. E John Zorn abre o primeiro “Repositório” de suas “multiplicidades” com uma música que se chama “Perceptors”. Para Deleuze e Guattari a diferença é que enquanto na filosofia se pensa com conceitos, na ciência se pensa com funções e na arte o pensamento se desdobra em afetos e perceptos. O que diz respeito aos “agregados sensíveis”: um artista plástico pensa em termos de combinações de cores, formas e texturas – um músico trabalha com timbres, volume, altura, ritmos, andamentos - todos são modulações do sensível, daquilo que se pode sentir e compreender através dos sentidos. John Zorn parece se sentir à vontade nessa paisagem conceitual. Sua banda também não fica para trás.

CONFIRA:

https://www.youtube.com/watch?v=ZxwZgPIDxWA

https://www.youtube.com/watch?v=UcK88sS8wbU

https://www.youtube.com/watch?v=nzErdSvcem8

O filósofo francês Gilles Deleuze
O filósofo francês Gilles Deleuze | Foto: Webdeleuze.org

O guitarrista prodígio californiano Julian Lage é corresponsável por diálogos melódicos que se desenvolvem por longas linhas de improvisação com o tecladista não menos virtuoso Brian Marsella. A cozinha fusion do baterista Chess Smith e o contrabaixo do peruano Jorge Roeder garantem a vitória sobre a gravidade de toda a estrutura onírica da inspiração de Zorn. Assim como Diferença e Repetição é a grande tese de Deleuze publicada no ano da graça de 1968, nas “Multiplicities” de Zorn, a faixa homônima é um dos grandes momentos do disco, conseguindo dar consistência ao equilíbrio instável da harmonia desconstruída da composição com momentos de um lirismo quase romântico.


Não faltou uma citação a um aspecto especial da filosofia deleuziana. “Time Image” faz referência aos dois livros de Deleuze consagrados ao cinema: Imagem Movimento e Imagem Tempo – obras nas quais o filósofo emparelha filosofia e arte como dimensões complementares do pensar. Enquanto citação, “Mil Platôs” ficou dividido em duas composições: “1000” e “Plateaux”. Essa última como uma sucessão de longos arpegios que evoluem sinestesicamente em estruturas circulares. Algo para nutrir quem se enfastia com a redundância para celebrar a repetição como devir da diferença. “Planes of Immanence” carrega mais nas linhas de bateria e baixo como traços com os quais se “recorta o caos” para construir variações prolíficas. “Chaosmos” encerra o disco mencionando a obra de Guattari dedicada à estética como dimensão de militância num mundo pós-industrial. CAOS+COSMOS, Caosmos. Caosmose. A fórmula que sintetiza a tensão que movimenta cada linha de tempo e cada estrutura harmônica na musicalidade desse disco de John Zorn.



Não é a primeira vez que Zorn se aventura em compor como quem escreve um comentário musical sobre uma obra filosófica. Em sua discografia o compositor visitou outras paisagens conceituais como em Espinosa, lançado um pouco antes do primeiro disco dedicado a Deleuze no ano passado. Tratactus Musico-Philosophicus de 2019 é uma paráfrase musical do “Tratactus Logico-Philosophicus” de Ludwig Wittgenstein assim como “The Interpretations of Dreams” (2017) é uma menção direta à obra de Freud que marcou o nascimento da psicanálise.

Multiplicities – A Repository of Non-Existent Objects II
Multiplicities – A Repository of Non-Existent Objects II | Foto: Creative Commons



Também Zorn não é o primeiro a se inspirar na filosofia de Deleuze para compor. Quando vivo, Deleuze chegou a participar de algumas gravações de seu amigo Richard Pinhas lendo trechos de citações de Nietzsche e Espinosa, o que ficou registrado nos discos “Eletronic Guerrilla” (1974) do grupo progressivo Heldon e “L’Ethique”(1979), disco solo de Pinhas. O texto “Le Voyageur”, que Deleuze lê em “Eletronic Guerrilla” é o último aforismo (número 638) de “Humano, Demasiado Humano”, de Friedrich Nietzsche. “O Andarilho”: “ “Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra...”. É com essa liberdade que Zorn celebra a obra filosófica do francês. A errância como paixão feliz de um espírito livre porque nômade, frágil, instável, fugaz e trágico. Demasiado humano.



Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL e está infeliz com a falta de reconhecimento das Universidades Estaduais do Paraná e também com a ausência de um gesto de valorização e respeito para com seus professores por parte dos poderes políticos.