Paracelso descreve as sílfides como seres elementais do ar que trazem aos sonhadores, poetas e artistas a sua inspiração. Quando Agnes Obel canta é possível sentir a presença desses seres mágicos. Relativamente conhecida do grande público brasileiro por conta da trilha sonora da série alemã “Dark”, Obel agora retoma o contato com seu público com dois novos EP’s gravados ao vivo que foram lançados recentemente nas plataformas de streaming: Live 2022 vol.1 e vol.2.

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Cada Ep traz duas gravações registradas durante a turnê de regresso da pandemia, quando as aglomerações voltaram a ser liberadas. Não são composições novas, mas suas versões ao vivo valem pela força elemental captada nas apresentações.

No volume 1 estão “Dorian” e “Philarmonics” e no volume 2 “Red Virgin Soil” e “Trojan Horses”. É material do início de sua carreira (Philarmonics - 2011) e de seu disco mais conhecido, Citzen of Glass de 2016 (Dorian, Red Virgin Soil e Trojan Horses).

A combinação de tecnologia com a delicadeza de uma porcelana melódica para o som do piano e do violoncelo está presente com toda a força de sempre. Obel criou uma ambiência sonora para suas composições que consegue equilibrar uma estética de ambient music com uma dinâmica de

canção pop. Tudo sob o manto do mais profundo intimismo no qual se reconhecem suas referências a Debussy e Erik Satie.

“Familiar” de Agnes Obel na trilha da série Dark:

São paisagens sonoras de afetos introspectivos. É aí que se podem ouvir as sílfides cantarem. Obel compõe para mergulhos num universo assim. É uma musicalidade de individuação. Como o ar para os sonhadores, diria o filósofo francês Gaston Bachellard. Porque a música pode ser um dispositivo para acionar devaneios.

Num mundo onde tudo é informação conectada a produção incessante de algum valor, a música de Agnes Obel propõe um tempo de parada. Silêncio para que o sentido possa se manifestar mais uma vez. Uma música que dispara a memória da quietude de um mundo interior. Novas maneiras de ouvir.

É que o novíssimo mundo da ultra-informação enseja toda uma nova ecologia midiática à qual ainda estamos nos acostumando. Livros, discos, filmes e até mesmo o próprio jornalismo já não acontecem mais como tradicionalmente aconteciam. As mediações, os circuitos e os formatos são outros. Se a internet transformou as relações de produção desses bens culturais, consequentemente nossa maneira de ler, ouvir e ver ambém se transformou. A música de Agnes Obel parece vir desse lugar de grandes transformações. Ela soa familiar e ao mesmo tempo envolta numa bruma de mistério, tal como esse mesmo mundo de sempre se torna permeado pelo desconhecido enquanto anoitece. Um mundo noturno povoado por sombras e ausências. Um mundo dionisíaco.

A compositora que hoje mora em Berlin afirma numa entrevista a rede de TV Deutsche Welle que busca inspiração caminhando de madrugada pelas ruas desertas da capital alemã.

Entrevista da cantora e compositora para a Deutsche Welle

Ao todo a discografia de Agnes Obel consiste em quatro trabalhos: “Philarmonics” (2011), “Aventine” (2013), “Citzen of Glass” (2016) e Myopia (2020) e mais 25 EP’s contando com os que foram lançados agora.

Hildegard von Bingen- Symphonia armonie celestium revelationum

Sua figura marca a cena musical europeia reverberando um imaginário ancestral que percorre os países nórdicos e que foi fixado por Hildegard Von Bingen. Contrariando todas as grandes construções da história da música que via de regra apagaram a presença das mulheres como personagens ativas, Bingen foi uma personagem fundamental do período medieval por ter sido compositora, cientista e ter até recebido autorização papal para rezar missas, isso tudo no século XII. Agnes Obel atualiza esse imaginário ao trazer para o centro de suas composições a voz humana com uma força que vem do fato dela ser feminina, diferente da predominância de um poder masculino na história da música. E o resultado é uma música etérea, mas ao mesmo tempo marcante e forte.

Cheia de contrastes como numa cena do barroco na qual as figuras surgem de um fundo escuro como que saltando para uma luz plena. É esse salto que a música de Obel enseja. Por mais densas que sejam as sombras que nos envolvem, a arte ilumina e dissolve sempre qualquer forma de obscurantismo. Vale a pena conhecer e ouvir.

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.