No meu primeiro livro de leitura havia uma lição que dizia: "Está vendo aquela casinha bonita? É ali que eu moro. Na frente há um belo jardim e atrás um pomar cheio de árvores, com frutas. Meu pai sai cedo para trabalhar e cuidar para não faltar nada em casa para mim e para meus irmãos. Minha mãe está sempre limpando e arrumando a casa. Não há coisa mais feia do que uma casa suja e desarrumada".

Eu tentava me encaixar nessa família padrão da época mas não entrava. Pra começar minha casa não era assim. Minha mãe não cuidava nem arrumava porque estava sempre trabalhando fora ou costurando. Quem plantava as flores na frente era eu. O quintal dava gosto porque tinha de tudo: mangueiras, goiabeiras, amoreiras, romãzeiras, laranjeiras, abacateiros enormes, caquizeiros, mamoeiros, limoeiros, jaqueiras e até um pé de maçãs visitado por todos os vizinhos por ser uma raridade. Eu amava tudo aquilo como se ama um paraíso que podia chamar de meu quintal... Nem sei como cabia tanta coisa ali.
E meu pai... bem, essa pessoa havia falecido muito precocemente, para tristeza dos meus avós, das suas irmãs e da minha mãe.

Nós, crianças, não entendíamos nada e ponto. Acabou! Quem mais falava dele para nós era a vó Luiza. Falava de seus gostos, do seu jeito e o lembrava como Finado Arlindo, tanto que achei que o nome dele era esse. E no "Dia de Finado" íamos ao Cemitério levar coroas feitas com flores de papel crepom para ele e a nona Rosa, ou Finada Nona. Ao longo do ano, as flores iam derretendo e colorindo as pequenas cruzes. Minha mãe só falava que seu finado marido era bonito, elegante e fino e trabalhara numa função importante na Usina Central Paraná, dos Lunardelli, em Porecatu, no início dos anos 1950.

Imagem ilustrativa da imagem Lembrança paterna



Sem nenhum trauma, nem bullying, a gente cresceu com a ausência do pai, mas com sua presença nas conversas e lembranças. A foto grande e em moldura oval colocada na sala, de farda oficial em tons oliva, lembrava que servira o Exército. Descobri ainda que era baloneiro por meiio de fotos em que ele aparecia soltando balões com colegas do quartel; sabia que frequentou a escola - ia de trem para Ibitirama - e sabia ler e escrever muito bem, luxo para poucos, na época. Pelas cartas que deixou, além de escrever bem tinha uma caligrafia maravilhosa. "Por isso", dizia minha avó, "por ter estudo é que conseguiu bom emprego". Descobri também uma folha com uma poesia copiada por ele, A Flor e a fonte, e me senti feliz porque "puxei pra ele" nesse quesito de poesia.

Além das fotos, uma lembrança de meu pai me marcou bastante: havia um paletó pendurado na parede do quarto. Era claro, de linho e com riscas. A gente, mesmo curiosa, não mexia porque minha irmã mais velha havia dito que embaixo havia um monte de baratas. Mas eu ficava a olhar e a imaginar como ele seria, o que estaria fazendo, como seria a nossa vida com a presença de um pai. Mas nada de duradouro porque, para nos manter, tinha minha mãe como referência, meu avô, figura masculina forte, sem nunca usar de autoritarismo e minha avó para amar, receber amor e ensinar a amar. Nunca ouvi ninguém nos chamar de coitados por sermos órfãos de pai, nem que "Deus levou, quis assim", porque Deus não o levaria para longe de sua família. Simplesmente éramos uma família sem a presença paterna.

Ainda sonhava com uma casa bonita como a do livro, imaginava como seria o sofá que a gente não tinha, o abajur do lado, talvez a luz elétrica, o chuveiro de balde, enquanto nós nos banhávamos numa grande bacia, o que já era muito bom. O grande jardim da lição era bem diferente do nosso, tão cheio de folhagens e flores plantadas em latas, pendendo das paredes. Mas isso era o de menos, não chegava a incomodar porque, além da cerca, havia tantas flores, tanta vida e alegria que era só abrir o portão e partir para a aventura de viver, brincar na rua, voltar suja para casa, encontrar os bolinhos e o café com leite, querer dormir sem tomar banho, brigar com os irmãos e fazer as pazes, ser criança de verdade sem se importar com os problemas dos adultos. Conviver com a presença de tanta gente querida equilibrava com a ausência de outras que também foram amadas, e nos davam a certeza de que a vida é feita assim mesmo.

O tempo passou, o paletó foi tirado da parede, e não havia baratas por trás, como temíamos, mas, aos poucos, fomos compreendendo que esse paletó abrigara a história do nosso querido pai, uma história de vida curta, bonita e verdadeira, e que sempre poderemos relembrar com imensa saudade.

Estela Maria Frederico Ferreira, leitora da FOLHA