Acordando com o rádio ligado
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sábado, 21 de outubro de 2017
Tive que solicitar um documento num órgão público onde há grande procura por aquele tipo de serviço e, sabendo que teria que enfrentar filas e algum tempo de espera, coloquei o relógio para despertar bem antes do amanhecer. Sozinho na casa às escuras me dei conta do encanto da noite se rendendo ao dia e de como pode ser prazeroso observar a beleza do alvorecer, apreciar as cores e os sons do dia que se aproxima.
Os pardais, bem-te-vis e quero-queros comandam a passarada na cantoria matinal, dando boas vindas ao dia que começa e, lentamente, a penumbra da madrugada vai abrindo espaço para a luz, numa suave transição da noite para o dia. Em seguida, as pessoas passam a assumir o seu lugar na natureza, sendo impossível não ouvir os ruídos vindos das casas vizinhas, as batidas de portas e janelas, o barulho de aparelhos eletrodomésticos, de alarmes e motores de automóveis, enfim, o cotidiano da vida.
Fiquei pensando nisso tudo e de repente me lembrei do tempo em que minha mãe me acordava cedinho pra ir à escola. Vieram à memória o cheiro bom do café sendo coado, o sabor da manteiga derretendo na quentura do pão, o perfume do uniforme escolar, limpinho e engomado... e o barulho agradável do rádio ligado! Ouvir rádio ao amanhecer era um costume das famílias daquela época e se repetia na maioria das casas. As pessoas gostavam de ouvir as primeiras notícias do dia pelas emissoras AM e as rádios iam intercalando verdadeiras pérolas da música sertaneja durante a programação. Pode-se dizer que aquilo era a apresentação da autêntica música sertaneja, algo que hoje as pessoas chamam de "música de raiz ou modão".
Era interessante perceber que as famílias ouviam o rádio em alto volume e ninguém se incomodava por isso, talvez pelo fato de que grande parte dos aparelhos ficava sintonizada na mesma estação, sendo muito difícil saber quem estava com o volume exagerado. As famílias se reuniam durante o café, cada um se preparando para cumprir as obrigações do dia e enquanto isso o locutor mandava saudações aos ouvintes, dando detalhes precisos de identificação: "aqui vai o nosso sincero abraço para a família do senhor Antonio Farias da Silva, nosso querido ouvinte da Fazenda Santa Helena".
Naquela época possuir telefone era privilégio de poucos e as pessoas pediam músicas por meio de cartas enviadas às emissoras de rádio, que atendiam à demanda conforme os seus critérios. Confesso que havia uma silenciosa inveja na vizinhança quando alguém era atendido. Surgiam comentários como: "Dona Cidinha, a senhora ouviu na Rádio Difusora que a família do Pereira foi citada novamente no programa Bom Dia Sertão?".
É dessa época que vem a minha admiração e respeito pelos profissionais do rádio e pelas duplas sertanejas que levavam entretenimento e alegria às pessoas. Não dá para esquecer de Tonico e Tinoco, Belmonte e Amaraí, Pedro Bento e Zé da Estrada, Liu e Léu, Torres e Florêncio, Tião Carrero e Pardinho, Cascatinha e Inhana, Zé Carreiro e Carreirinho, Irmãs Castro, Zilo e Zalo, Zé Fortuna e Pitangueira, Zico e Zeca, Lourenço e Lourival, Irmãs Galvão, Milionário e José Rico e tantos outros artistas daquele tempo. E assim, querendo homenageá-los, rezo para que no amanhecer de um reino encantado do Norte do Paraná, alguém esteja sorrindo com o rádio ligado.
Gerson Antonio Melatti, leitor da FOLHA