Antigamente as pessoas assobiavam. O assobio era um código a revelar tristezas, alegrias, momentos de descontração. Mas, sobretudo, anunciava a chegada e a saída do dono da casa, como um apito de navio, só que menos solene.

Hoje, quase ninguém assobia. Muitos sons humanos foram substituídos inexoravelmente pelos eletrônicos, pelas buzinas dos carros, pelo sinal do elevador, pelos alarmes que protegem as residências. O fato é que o assobio foi destituído como os hábitos de limpar os pés para pisar na sala, comprar leite em garrafa, usar sombrinha para se proteger do sol. É interessante a história dos costumes, como uns substituem outros e, quando nos damos conta, ninguém mais assobia.

Lembrei-me deste assunto porque outro dia um idoso assobiava sem parar num supermercado da avenida JK. Ele estava na banca de frutas soltando trinados e logo vi que era um especialista.

Especialistas em assobios modulam os sons agudos e graves, tirando melodias das flautas que guardam entre a dobras da língua.

Da banca de frutas o homem foi para a seção de verduras, sempre assobiando, depois comprou ovos, carne, produtos de higiene, sem abandonar a música. Assim, eu sabia que ele estava por perto quando ouvia o solo tão humano e perfeito que poderia ser encarado como um concerto improvisado para platéias sensíveis. Mas, hoje, a poluição sonora invalidou quase completamente nossos sentidos e, além de mim, nenhuma outra pessoa parecia interessar-se por aquele assobio, que era a demonstração da habilidade de um homem de outro tempo.

Na minha infância, o assobio era um atributo de meninos. Eles sabiam como ninguém chamar cachorros, mexer com as moças, comunicar-se uns com os outros de modo camarada ou irritante. Uma gangue de moleques se reconhecia pelos sons e as mulheres sabiam quando o marido estava chegando do trabalho pelo assobio que se ouvia a um quarteirão de distância.

Secretamente, sempre quis saber assobiar. Admirava as meninas que disputavam com os meninos a prática de soprar um som agudíssimo, colocando os dedos entre a língua e o céu da boca: fiuuuuuuu...e aquele ruído cortava o ar com uma precisão de tirar o fôlego.

Mas sempre fui péssima assobiadora, minha incapacidade neste quesito só se equiparava às minhas limitações para nadar, jogar bola e manter a concentração nas aulas de matemática. Nunca soube fazer nada disso.

Assim, desenvolvi o senso de observação, mantendo interesse pelo mundo que me cerca e escrevendo sobre isso. Como não sabia nadar, assobiar nem fazer contas, acabei me debruçando sobre as palavras,

escrevendo com gosto tanto num papel quanto num muro.

O que me fez voltar à infância para visitar meus interesses e dilemas foi aquele homem no supermercado, o homem com ares de passarinho que comprava ovos acompanhado de sua própria orquestra. Fico pensando como viajamos para longe a partir de uma cena corriqueira, de um hábito destituído, de um assobio que parece o som de um navio perdido para sempre no oceano da vida moderna, bem menos musical e singela.

* Crônica publicada originalmente em 2008.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina