No Brasil, todo homem branco que mata outro homem branco de forma intencional tem que ser submetido ao julgamento da sociedade em um Tribunal do Júri. Mas e quando um índio mata outro índio? Quem deve julgá-lo? Apesar de posicionamento claro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que crimes dolosos contra a vida devam ser julgados pela Justiça Comum, muitos entendem que mesmo os delitos comuns cometidos por indígenas seriam de competência da Justiça Federal. Controverso, o assunto integra as discussões sobre a atualização do Estatuto do Índio, que está prestes a completar 35 anos.
No Paraná e Santa Catarina, segundo a regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) que abrange os dois estados, há atualmente oito índios presos por crimes como tráfico de drogas, homicídio e latrocínio (roubo seguido de morte). Outros tantos respondem a processos criminais em liberdade, como é o caso de um caingangue da Reserva Apucaraninha, em Tamarana (Norte). Ele é acusado de, em agosto deste ano, ter golpeado com um punhal Edval Ner Nor Marcolino Galdino, 30 anos, que faleceu no hospital.
O delegado de Homicídios da 10 Subdivisão Policial, Ernandez César Alves, relatou o caso à promotora da 1 Vara Criminal de Londrina, Susana Feitosa de Lacerda, observando que o processo deveria tramitar na Justiça Federal. Embora não tenha se debruçado sobre os autos, a promotora, de antemão, disse seguir entendimento do STJ, explicitado pela Súmula 140: crimes comuns sem relação com interesses dos povos indígenas são de competência da Justiça Estadual.
O procurador federal lotado na Procuradoria Especial da Funai em Curitiba, Derli Cardozo Fiuza, faz a defesa de índios processados por crimes comuns e entende que atos praticados por ou contra índios envolvem sim interesses nacionais e, por isso, devem ser julgados pela Justiça Federal. ''Uma Justiça é melhor que a outra? Não. É que a Justiça Federal cuida dos problemas da Nação e isso extrapola os limites dos municípios, dos estados e, às vezes, até do próprio país. Nos Estados Unidos, em evento envolvendo a comunidade hispânica, por exemplo, a competência é da Justiça Federal'', argui.
Fiuza já propôs, inclusive, que todo índio acusado deveria ter o direito de escolher ser ou não defendido pela União: ''o delegado teria que perguntar se o índio teria interesse que fosse destacado um defensor federal para sua defesa. Se dissesse que sim, o delegado teria que suspender o procedimento e oficiar os órgãos da União para que designassem um defensor''. Ele destaca que o tema precisa integrar a pauta de discussão sobre a atualização do Estatuto do Índio - legislação instituída em dezembro de 1973 - e incluir a voz dos povos indígenas.
O procurador aponta que, entre os estados brasileiros, há grandes distorções e exemplifica que a Organização das Nações Unidas (ONU) ameaça dar um ''voto de censura'' ao Mato Grosso do Sul pelo tratamento que dispensa aos 442 índios que cumprem pena em prisões comuns no estado. ''Há casos de réus confessos que sequer falam o português.'' A coordenadora do Programa Caingangue da Secretaria de Ação Social de Londrina, Marlene de Oliveira, também pede mais cautela: ''em hipótese alguma nenhum crime pode ficar impune. O agressor tem que ser punido nas leis dos índios ou nas nossas, mas cada caso tem que ser cuidado individualmente.''