A Defensoria Pública do Estado do Paraná recomendou às secretarias estadual e municipal de Saúde de Curitiba que cirurgias transgenitalizadoras sejam realizadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) no Hospital de Clínicas da UFPR (Universidade Federal do Paraná). A iniciativa visa contemplar uma demanda antiga das pessoas transexuais e travestis do Estado que, ao manifestarem o desejo de realizar procedimentos de transformação corporal, não conseguem fazer pelo sistema público no Paraná. O hospital da UFPR tem interesse em realizar as cirurgias e aguarda aprovação da habilitação pelo Ministério da Saúde.

A cirurgia mais complexa que poderá ser realizada no Paraná é a de redesignação do sexo com construção de vagina no lugar do pênis. A cirurgia para construção de pênis já existe mas ainda está em fase experimental, por isso, a princípio, não será realizada. Além disso, há pedidos para intervenções de raspagem do pomo de adão e colocação de próteses mamárias de silicone em mulheres trans e retirada de seios (mastectomia) e útero (histerectomia) em homens trans.

"Os homens trans fazem tratamento hormonal que leva à atrofia do útero. Não faz sentido que tenham de lidar com menstruação", exemplifica a defensora pública Camille Vieira da Costa. Para realizar a cirurgia, é preciso ter no mínimo 21 anos e ter passado por atendimento interdisciplinar com médico e psicólogo, entre outros profissionais, por pelo menos dois anos. Já o acompanhamento em ambulatório especializado e o uso de hormônios é permitido a partir dos 18 anos.

A primeira demanda da população transexual e travesti que chegou à Defensoria Pública do Paraná foi relativa à retificação de nome e gênero no registro civil.
"Fizemos mutirões para atender todas as solicitações", recordou. Em contato com essa comunidade, os defensores passaram a conhecer outras necessidades do grupo. "Desde o início, em 2014, já nos disseram que o Paraná não fazia as cirurgias. Foi aí que começamos a discutir essa temática", explicou.

Outra justificativa para a cobrança da realização de cirurgias no Estado é o fato de funcionar em Curitiba, desde 2013, o CPATT (Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais). O serviço tem 593 homens e mulheres trans cadastrados e atende regularmente 289 pessoas com hormonoterapia, atendimento psicológico e também endocrinologistas. O desejo de muitos pacientes em fase de transformação corporal através de hormônios é realizar as cirurgias. "Não justifica termos o centro e não podermos encaminhar para outros procedimentos", diz Costa.

Andressa Verchai, chefe do CPATT, explica que o centro oferece medicamentos fornecidos gratuitamente pelo Estado. Para serem encaminhados aos procedimentos cirúrgicos, uma portaria do Ministério da Saúde define que é necessário passar por pelo menos dois anos de acompanhamento multiprofissional. "O problema, hoje, é que os pacientes que manifestam desejo de passar pelas cirurgias não têm onde realizá-las pelo SUS", afirma. Uma possibilidade é que se inscrevam nos estados que já realizam a cirurgia, mas a espera pode durar mais de dez anos.

Atualmente, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Pernambuco realizam procedimentos cirúrgicos de transformação corporal. O centro paranaense, entretanto, não pode fazer encaminhamentos, pois cada serviço funciona de forma independente. "Seria importante trabalharmos em rede", pontua.

A modificação corporal, segundo ela, não ocorre da noite para o dia. "Até mesmo para lidar com a decisão de se submeter à transformação é preciso acompanhamento. A grande maioria quer a cirurgia, mas alguns mudam de ideia ao se informarem sobre os riscos, afinal, é uma cirurgia como qualquer outra", comenta.

HORMÔNIOS
Verchai explica que, antes do serviço, a população de transexuais e travestis usava hormônios por conta própria, o que traz muitos riscos à saúde, entre eles a possibilidade de câncer e trombose. No ambulatório, todas as pessoas que se submetem à hormonoterapia fazem exames periódicos. "Quando há alguma alteração, suspendemos o medicamento e continuamos acompanhando", explica.

Apesar da importância do acompanhamento, ela ressalta que a fila de espera para ingressar no único serviço do Paraná é grande. "Só temos um médico e três psicólogas, não conseguimos abrir muitas novas vagas", diz. Outra preocupação da gestora é que muitos pacientes desistem do processo quando percebem que não vão conseguir a cirurgia. "Isso só reforça a necessidade de oferecer os procedimentos no processo", diz. Ela lembra que o direito à saúde é um direito de todos os cidadãos e todos procedimentos inerentes à transformação corporal estão incluídos nesta garantia.

Costa, da Defensoria Pública, lembra que a comunidade formada por pessoas trans e travestis também paga impostos, mas não é contemplada por políticas públicas. "Recomendamos que o estado faça as cirurgias por ser uma questão de acesso à saúde integral", reforçou, lembrando que as cirurgias do processo transexualizador se constituem em um grande passo para que as pessoas travestis e transexuais sejam reconhecidas e reinseridas socialmente.

Atendimento em saúde é regulamentado
O atendimento em saúde às pessoas transexuais e travestis é regulamentado por Ministério da Saúde, conselhos federais de Medicina e de Psicologia. Todos os documentos produzidos por essas instituições reconhecem o direito às cirurgias transexualizadoras. "O Brasil tem grande número de transexuais sem atendimento adequado conforme a lei" denuncia Rosires Pereira de Andrade, professor titular de reprodução humana e gerente de ensino e pesquisa do HC (Hospital das Clínicas) da UFPR. "São pessoas sofredoras crônicas, por não serem aceitas pela família, pela comunidade e mesmo entre os profissionais de saúde. Falta formação e capacitação, estamos discutindo o assunto há anos no HC."

A ideia é que o hospital ofereça atendimento global aos pacientes, o que inclui
pediatras, psiquiatras, psicólogos, ginecologistas, urologistas, cirurgiões plásticos, enfermeiros e assistentes sociais. "Todos precisam falar a mesma língua e passar por capacitação. Ainda não temos experiência na área", avalia, destacando que o primeiro passo para implantar um protocolo de atendimento será o treinamento da equipe. "As normas já estão bem estabelecidas pelo Ministério da Saúde, é preciso passar por atendimento clínico por no mínimo dois antes antes de qualquer cirurgia", diz.

A psicóloga Grazielle Tagliamento, professora do programa de mestrado em psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná e coordenadora do Núcleo Diveges (Diversidade de Gênero e Sexualidades) do CRP (Conselho Regional de Psicologia) explica que transexualidade e travestilidade são expressões de gênero. "Não é doença, não tem certo nem errado e não tem causa. Por isso, buscamos a despatologização", diz.

Assim como Rosires, ela denuncia que o atendimento em saúde da população transexual, em geral, é marcada pela discriminação e pelo preconceito. "Não é acolhedora e nem de qualidade, como prevê a constituição e a lei do SUS", diz, destacando que grande parte dos serviços não respeitam o nome social e não fazem todos os exames necessários a essas pessoas. A consequência, segundo ela, é o aumento da vulnerabilidade e do adoecimento. "Quando as pessoas sentem necessidade de mudança corporal, mas não têm acesso aos procedimentos, correm mais risco de sofrer de depressão, ansiedade, praticar automutilação e até suicídio, além de abuso de álcool ou outras drogas", diz.

Tagliamento explica que o acompanhamento psicológico para pessoas em processo de transexualização é apenas para reforçar o autoconhecimento e ajudar a lidar com a discriminação da sociedade. "Até mesmo o laudo para realização de cirurgias é construído com a própria pessoa. Não atestamos se é ou não transexual, mas se está preparada para a mudança, o que se conclui em conjunto." (C.A.)

'Não faz parte da pessoa e não tem como aceitar'

Rafaelly Wiest, presidente do transgrupo Marcela Prado e membro da diretoria da Aliança Nacional LGBTI, destaca que as cirurgias de transgenitalização e os procedimentos secundários para transformação corporal são regulamentadas por Ministério da Saúde e Conselho Federal de Medicina. "Existe um protocolo clínico, não é para todas as pessoas", adverte.

Segundo ela, a sociedade em geral não entende que não se trata de questão estética, mas de garantia de saúde emocional. "Se você é mulher, por exemplo, feche os olhos e se imagine com rosto e corpo cheios de pelo, sem seios e um pênis no meio das pernas. Não faz parte da pessoa e não tem como aceitar. As pessoas trans também estão em um corpo que não pertence a elas", compara.

As cirurgias, neste contexto, são uma oportunidade de readequar identidade ao corpo físico graças à evolução da medicina. "Pessoas que não são transexuais jamais vão querer se submeter", destaca, lembrando que o processo transexualizador é um longo caminho. "No processo vamos nos autodescobrindo, muitas pessoas inclusive percebem que conseguem viver bem com o órgão genital de nascimento e fazem só as modificações corpóreas", diz.

Wiest lembra que a realização de cirurgias no Paraná é uma grande conquista para a população trans. "Reconhecemos também o apoio da secretaria estadual de saúde, que está bancando essa demanda", elogia. (C.A.)