Jacarezinho - A mão esquerda agarra firme a cana, a direita empunha o facão, faz o movimento vigoroso do corte. O sol castiga, o calor desgasta, a repetição prossegue por horas e horas. O boia-fria sofre. Tanto que às vezes desaba derrotado, com cãimbras generalizadas e espasmos. É o chamado borrado, um dos maiores fantasmas enfrentados por quem vive boa parte do tempo ganhando a vida nos canaviais. No dia em que isso acontece, o tema saúde torna-se obrigatório em qualquer conversa após o expediente.
No ''descanso'', quando o esgotamento físico é enfim vencido, o fenômeno que a ciência chama de sofrimento social entra em cena.
Para estudar o tema, o professor Antonio Donizeti Fernandes, de 47 anos, do Centro de Ciências Humanas e da Educação (CCHE) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), no campus de Jacarezinho (Norte Pioneiro), radicalizou. Em 2009, decidiu se instalar em uma das comunidades mais pobres da cidade, onde grande parte das 80 famílias era composta por cortadores de cana-de-açúcar que se deslocam diariamente em grupo até a lavoura.
Por dois meses viveu de maneira precária em um barraco, em condições bem semelhantes aos boias-frias. ''Queria ficar mais, fiz muitas entrevistas, colhi muitas imagens. Mas quando senti que estava realmente ameaçado, resolvi que já era hora de voltar pra casa'', conta o professor.
A experiência do trabalho prático foi usado na tese de doutorado ''Da questão do trabalho fora do mundo do trabalho: canavieiros e a experiência social do sofrimento'', defendido com êxito na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus Marília, após quatro anos de estudos.
Para o autor, as 318 páginas do trabalho revelam um retrato do País, ''um olhar para uma realidade que de tão visível se tornou comum e invisível''.
Além de garantir o título de doutor a Donizeti, o trabalho pode servir de base para a produção de um documentário. Donizeti também pensa em editar o material em um livro voltado ao público acadêmico.
Os projetos devem deslanchar em 2013 quando Donizeti pretende se desligar do seu emprego fora do mundo acadêmico - ele é servidor público do Estado de São Paulo (trabalha na Vigilância Sanitária em Marília) - para se dedicar exclusivamente à Uenp e viver de vez no Paraná, onde passa três dias por semana.
Donizeti explica que a tese de doutorado se tornou seu projeto profissional desde que fez o mestrado ''Aventura do risco entre os trabalhadores do corte de cana''. Desde este estudo, iniciado há 12 anos, o professor entendeu que a condição visível vivida pelos trabalhadores tornou-se invisível por se apresentar ''muito familiar''.
O sofrimento social, assegura Fernandes, tem relação com o poder político, econômico e institucional. O estudo sustenta que a falta de políticas públicas e empresariais para os trabalhadores resultam em experiências negativas em áreas tão distintas como saúde, habitação e transporte.
O professor destaca a falta de um programa oficial de apoio à saúde dos cortadores de cana como a maior fonte de sofrimento. ''Os trabalhadores têm uma rotina extenuante e precisam de cuidados médicos especiais, mas isso não existe. E como recebem só quando trabalham preferem não enfrentar as dificuldades de atendimento e continuam a rotina''.
Fernandes prefere não identificar a comunidade onde viveu. Teme que seus antigos vizinhos sejam estigmatizados. Embora a estrutura social tenha sido mantida e os cortadores de cana ainda sejam maioria, o bairro viveu um esvaziamento com a remoção de dezenas de famílias para um novo conjunto habitacional. O bairro perdeu as vielas estreitas, mas as condições de infraestrutura prosseguem precárias. O saneamento básico e o asfalto, por exemplo, ainda são só promessas para os ''invisíveis''.