Classificada como uma “cidade-nova”, com menos de um século de existência e criada ao longo do século XX, Londrina assim como as outras do mesmo tipo, modificam a sua paisagem de forma frenética. “O seu presente se inventa a todo instante, abrindo mão de suas realizações prévias para desafiar o futuro”, afirma Wander de Lara Proença, professor do departamento de História da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e da FTSA (Faculdade Teológica Sul Americana).

Na opinião dele, a busca por oportunidades permanece como força motriz de renovação. “Esse perfil é potencializado pela produção do conhecimento e aqui, o marco é a chegada da UEL, em 1970, e de outras instituições de ensino superior posteriormente estabelecidas na cidade. Com isso, novas pesquisas passaram a estudar o passado da região, pelo viés de diferentes áreas do conhecimento, problematizando o imaginário de uma história hegemônica ou oficial, elaborada pelo prisma de uma elite vinculada aos poderes de mando”, comenta.

Assim, continua o historiador, outros grupos sociais passaram a ser requisitados como protagonistas do passado e parte do presente. “Falo das populações negras, dos povos originários, mulheres, nordestinos, e tantos outros a serem incluídos e representados, por exemplo, nos lugares de memória, museus, monumentos, praças e ruas. A cidade precisa espelhar o protagonismo da diversidade que a construiu”, diz.

Para Proença, até o termo merece uma readequação. “É pioneirismo. Ao longo dos seus 89 anos, Londrina tem se caracterizado como uma cidade de vanguarda, prospectora do que é inovação no campo da educação, da saúde, da tecnologia, da comunicação, nas manifestações artísticas e culturais, na prestação de serviços por entidades assistenciais, ou na produção agrícola que se reinventa. A identidade representativa de Londrina está em sua diversidade. Nenhuma cidade brasileira teve em sua formação, em tão pouco tempo, a presença de 33 grupos étnicos. Nessa multiculturalidade e capacidade de acolher a pluralidade reside a força identitária de Londrina, permanecendo como um legado para guiar o desbravamento de um futuro capaz de criar uma cidade ainda mais respeitosa e mais inclusiva. O conhecimento do passado possibilita que surjam novos futuros”, pontua.

Os descendentes

Na metade da década de 1950, Alcênia Bris de Oliveira saia de Assaí com a única filha, Ilda, na época com doze anos de idade, para recomeçar a vida na cidade grande. Ela era cozinheira e a filha, hoje com 80 anos, ainda guarda na memória o barro da avenida Paraná. Ilda Alves de Oliveira Teixeira nasceu em agosto de 1943 e tinha doze anos quando chegou em Londrina, só ela e a mãe.

Ilda de Oliveira chegou em Londrina com 12 anos e aos 15 anos alfabetizava adultos que trabalhavam nas plantações de café
Ilda de Oliveira chegou em Londrina com 12 anos e aos 15 anos alfabetizava adultos que trabalhavam nas plantações de café | Foto: Roberto Custódio

Ela também gosta de lembrar dos bailes na AROL, a Associação Recreativa Operária de Londrina, que ficava na Vila Nova, organização negra criada na década de 1950. “A gente ia de sapato velho, chegava no clube e deixava o sapato sujo no banheiro para dançar com o limpo”, lembra. Moravam na Vila Recreio e dali ela via a cidade crescer e com ela, a sua vontade de estudar; de ser professora. Mas antes, foi substituir a mãe na cozinha de um hotel, como cozinheira. Com 14 anos de idade, dava aulas de alfabetização para ensacadores de café. “Eu queria ser professora, de qualquer jeito”, sentencia.

Com a ajuda de Cipriano Miguel, que criou a associação onde a jovem Ilda adorava dançar, conseguiu junto ao prefeito Antonio Fernandes Sobrinho um lugar para lecionar. Uma menina negra, com quinze anos de idade, alfabetizando adultos, trabalhadores braçais nos cafezais. “Eu saia pelas máquinas de café chamando os ensacadores para estudar. Eles eram meninos também, me chamando de professora. Ninguém me chamava pelo nome, era só professora. Todos me ouviam, sentados. A minha vontade era ocupar uma cadeira na universidade federal, mas isso eu não pude. Éramos pobres”, rememora. Sempre como alfabetizadora, também deu aulas para adultos em uma escola no Jardim do Sol e continuou estudando e sonhando com as oportunidades.

Imaculada Conceição

“Era difícil. Na minha época, não se via negra estudar, ir para a escola. Na vila tinham outras mulheres negras, mas com um cabelo melhor, com uma condição de família melhor, com casa pra morar sem pagar aluguel. Eu estudava e trabalhava. Eu era a única negra no meio das brancas e me diziam que eu era um mosquito no leite. Eu me orgulhava disso, porque era o que eu queria. Estudei muito para me chegar onde eu cheguei. Prometi pra mim mesma que se um dia eu tivesse filhos, principalmente filhas, elas não iriam trabalhar como doméstica, sem discriminar esse trabalho. Na época fomos discriminadas e minhas filhas não passariam pelo que passei”, diz.

Em 1962 veio o casamento e Ilda foi a primeira mulher negra a casar na Igreja Imaculada da Conceição. Dois anos depois, chegou o primeiro filho e depois mais três, sendo deles, duas mulheres para cumprir o prometido: Regina e Rosana estudaram e se formaram na universidade, assim como os irmãos, todos londrinenses.

Uma mulher negra ocupando espaços em uma sociedade em construção e sob a sombra constante do racismo. “Aqui sempre teve. Eu passei muito por isso nas escolas, com os colegas e não desisti porque sempre fui muito persistente. Eu queria estudar. Meu pai achava que sabe ler e escrever o próprio nome já estava bom, mas eu bati o pé. Eu apanhava para não ir na escola, meu pai escondia meu material, mas eu fui em frente. Até os negros zombavam de mim porque eu andava muito com gente branca porque eram as pessoas que estudavam e eu queria estudar”, afirma.

Para atender questões familiares, Dona Ilda acabou estudando para ser enfermeira, profissão com a qual se aposentou. Chegou a sair de Londrina em algumas circunstancias, sempre atendendo demandas familiares, mas voltou e da última vez voltou sozinha, com os quatro filhos. Os olhos da menina professora ainda enxergam na Londrina de hoje, alguns traços do passado. “ A cidade cresceu muito. Toda vida tive muitas amizades, com todo mundo e isso não mudou. Tive bons empregos, as pessoas sempre me consideraram muito. A cidade cresceu mais isso não mudou”, diz.

As cartas de Arthur Thomas

Quando o pioneiro escocês Arthur Hugh Miller Thomas faleceu, o neto Alan tinha apenas dois anos de idade. Ele foi conhecer melhor o avô paterno ao tomar conhecimento das cartas escritas semanalmente para a mãe e depois, para a esposa Elizabeth, brasileira filha de ingleses. “Eu conheço a intimidade dele de uma forma que normalmente não conhecemos nossos avôs”, diz Alan Thomas, hoje com 65 anos de idade, filhos e netos londrinenses.

Alan, neto do pioneiro escocês Arthur Thomas: "O que ele fez aqui e no norte do Paraná foi excepcional"
Alan, neto do pioneiro escocês Arthur Thomas: "O que ele fez aqui e no norte do Paraná foi excepcional" | Foto: Roberto Custódio

“Ele saiu da Escócia com 16 anos de idade, trabalhou como jornalista na Inglaterra, em Singapura, foi condecorado na Primeira Guerra Mundial, foi para a África, trabalhou no Sudão e só depois veio para o Brasil. Toda essa vida registrada nas cartas então, consigo saber o que ele pensava, como mudou com o tempo. A minha relação com ele é de muito orgulho por ele ter sido quem foi. Uma pessoa que conseguiu superar a pobreza inicial e construiu uma aventura de vida extraordinária, em quatro continentes”, afirma. “O que ele fez aqui e no norte do Paraná foi excepcional. Impactando a vida de tantas pessoas, dando um exemplo de como se organiza, se administra, se torna viável quase um projeto de reforma agrária”, comenta.

O sobrenome não pesa porque a admiração pela figura do pioneiro é infinitamente maior. “É importante nas famílias terem esses exemplos a serem seguidos, de que é possível batalhar, ser bem-sucedido e até transformar o mundo se for o caso”. A família Thomas se dividia entre o Brasil e a Inglaterra; o próprio Alan estudou no exterior e voltou adulto para o Brasil, no começo da década de 1980.

Orgulho

Hoje, são 40 anos de Londrina. Das cartas do avô, Thomas lembra de trechos que falavam do aeroporto, das amizades, de ter recebido o presidente da República na sede da Companhia de Terras do Norte do Paraná, empresa que ele mesmo fundou. “Ele tinha muito orgulho, falava da Fazenda Primavera, de como a cidade crescia ao redor das suas terras”, conta. O avô faleceu em São Paulo, em 1960.

“História é uma coisa maravilhosa e ter história em um lugar é algo maravilhoso. Eu sinto uma conexão muito forte com Londrina, ainda mais sabendo que a família está aqui desde o início e não só porque meu avô ‘construiu Londrina’ como recita a placa embaixo do busto no Parque. Acredito que todo descendente de pioneiro sente isso, de ser o resultado de alguém que chegou aqui antes, batalhou e construiu algo dando condições melhores de vida para os que viriam” analisa Thomas.

Uma cidade crescida na multiculturalidade, multirracialidade e diversidade. “Isso tudo dá um toque especial ao Norte do Paraná. A história de quem estava batalhando no sitiozinho é tão interessante quanto saber a história do chefe da companhia. A história não é exclusiva e temos que saber dar lugar para os movimentos históricos de todos os tipos. Sem Arthur Thomas, Londrina não seria Londrina e também não seria nada sem o imigrante japonês. Nada é excludentes e Londrina é fruto de movimentos, de gente que pensou estrategicamente e de gente que só estava atrás do dinheiro para comprar comida. O planejamento foi importante, é real e não tem como discutir. Foi uma forma muito inteligente de desenvolver o norte do Paraná”, comenta.

O sobrenome famoso não fez os descendentes se acomodarem. “Meus filhos e netos sabem quem foi o pioneiro Arthur Thomas e se orgulham disso assim como eu, trabalharam para construir a própria vida e história. Uma coisa é ter orgulho de um avô, um bisavô, no caso deles. Outra coisa é dar valor demais para isso. Podem ter orgulho do bisavô, mas não podem ser orgulhosos por causa disso. Temos que desbravar as nossas próprias vidas”, completa.