A história da cidade tem tantas vozes. Algumas, ouvimos desde os tempos do Patrimônio Três Bocas, como aqui era conhecido até 1932 outras, foram sufocadas desde então. A pequena Londres, aquela das fotos em preto e branco nos museus e outros espaços públicos, as mesmas que recepcionam e se despedem de quem sobe (ou desce) as escadarias da rodoviária, falam de um passado de barro vermelho, de ingleses e gente atrás de uma nova vida, trazendo para esse pedaço grande de terra a vontade de construir algo.

Vozes que pesquisadores hoje fazem questão de ampliar e reparar, provando, através de métodos científicos de pesquisa, porque somos esse grande emaranhado de cores, rostos, origens e culturas. A Londrina, no auge dos seus 89 anos, completados neste 10 de dezembro, reflete muito do que ela foi no passado, com espaço para outras narrativas que ajudam a entender porque quem aqui chega, não pensa em ir embora.

Impossível começar a falar da história daqui sem falar nos pioneiros, aqueles que conseguiram colocar o próprio nome em monumentos, espaços públicos, que viraram nome de rua e até de bairros. Uma figura imponente no imaginário popular, associada a personagens desbravadores, superando desafios em um contexto de enorme dificuldades.

MEMÓRIA

De acordo com o professor do departamento de História da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e da FTSA (Faculdade Teológica Sul Americana), Wander de Lara Proença, por aqui, a memória reverencia aqueles homens (na sua grande maioria) com um espírito empreendedor, tomados de grande bravura, que enfrentaram um sertão inóspito, abrindo estradas e derrubando árvores com dimensões gigantescas entre outros feitos heroicos, dignos de um grande romance.

O professor Wander de Lara Proença: "pioneiro é um sinônimo do trabalhador que veio, superou obstáculos e venceu"
O professor Wander de Lara Proença: "pioneiro é um sinônimo do trabalhador que veio, superou obstáculos e venceu" | Foto: Matheus Alves Pereira/Arquivo Pessoal

“Pioneiros são assim lembrados como pessoas que, no contexto da primeira década, chegaram ao território em que nasceria Londrina e encontraram uma floresta praticamente intocada, que seria vencida por um ‘exército de machadeiros’; são indivíduos ou famílias que habitaram construções rústicas, conviveram com doenças típicas das regiões de fronteira, sendo frequentemente atacadas por insetos ou animais peçonhentos, feridos pelos próprios instrumentos de trabalho, transitando por ruas empoeiradas pela terra vermelha ou com os pés tomados de barro nos dias chuvosos; que a noite tinham só a luz do lampião e só podiam contar com remédios caseiros em situações de adoecimento. Pioneiro é um sinônimo do trabalhador que veio, superou obstáculos e venceu, abrindo caminhos rumo ao que se concebia como progresso e civilização”, explica.

Entre tantas características dessa época, ficou forte no imaginário londrinense até hoje a presença dos britânicos da companhia colonizadora mesmo que em números, a presença efetivamente britânica era pequena e acontecia de forma mais remota a partir dos escritórios que ficavam em Londres e em São Paulo. Vez ou outra vinha algum diretor sujar os sapatos no solo do norte do Paraná. “Além disso, a presença inglesa não foi longa: em 1944 o empreendimento britânico foi vendido a um grupo brasileiro, que a partir daí passaria a se chamar Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Entretanto, a representação inglesa permaneceu no imaginário da cidade, especialmente pelo nome atribuído ao lugar que era, até 1932, conhecido como Patrimônio Três Bocas, rebatizado em 1933 como Londrina, uma homenagem à cidade inglesa, onde estava situado o escritório central daquele empreendimento colonizador”, afirma Proença.

CARAVANA PIONEIRA

Batizar a cidade de Londrina foi escolha de João Domingues Sampaio, um dos diretores da Companhia de Terras Norte do Paraná. Outro fato que ajudou a fixar a presença dos ingleses por aqui foi a chegada, em 1929, do grupo conhecido como “caravana pioneira”, que estabeleceu o marco zero de fundação de Londrina, liderada por Georg Craig Smith, filho de um britânico com mãe brasileira.

Para o estudioso, a vinculação com representações britânicas não deve ser ignorada porque revela um conjuntura marcante: “A Inglaterra era vista como símbolo de modernidade e progresso naquele contexto simbolizado, por exemplo, no seu domínio e engenharia em produzir a malha ferroviária em diferentes regiões do país. Outro ponto, é o modelo de ocupação do território, numa extensão de 515 mil alqueires, de modo planejado, tanto no espaço urbano quanto no rural; o desenho de cidades-jardins, idealizadas originariamente no contexto inglês para um estilo de vida mais saudável frente ao agravamento da qualidade de vida decorrente da superpopulação urbana e a poluição industrial”, comenta.

É por isso que projetaram a criação de cidades-polo, que integrariam o urbano e o rural, separadas pela distância de 100 km aproximadamente, como vemos nos casos de Londrina, Maringá, Cianorte e Campo Mourão tendo no entremeio delas, loteamentos rurais com água na parte baixa e estrada de ferro no espigão, que abasteceriam os centros urbanos e deles usufruíam os serviços. “Ressalto ainda as estratégias de propagandas feitas no Brasil e no exterior projetando a região como Terra da Promissão, uma Nova Canaã, um novo Eldorado; os ingleses que construíram a América do Norte guiados por esse imaginário, o projetavam agora na fronteira do sertão paranaense”, revela.

VISIONÁRIOS

A facilidade da compra de lotes por grandes e pequenos, com longos prazos para o pagamento com recursos do lucro da própria produção também atraiu gente pra cá. “Isso chegou a ser classificado anacronicamente por alguns como um ‘modelo de reforma agrária’, tudo acompanhado por um discurso de ocupação pacífica e ordeira da terra, num modelo de parceria de investimento público-privado, com entrega de escritura de posse da terra ao comprador”, completa. Visionários, naquele tempo já existia uma preocupação ambiental e uma cláusula nos contratos de compra e venda dos lotes exigia do proprietário a preservação obrigatória de 20% da área adquirida como mata nativa. “Algo que na prática não foi respeitado, infelizmente”, diz.

O professor ainda cita o título de um livro, publicado em 1978, como exemplo do que foi a marca da presença inglesa como progenitora da ideia de progresso no norte do Paraná: “Londrina Monumental: milagre do gênio britânico e do caboclo vencendo as forças brutas da natureza”.

Para o pesquisador da historiografia do Paraná, com ênfase nos estudos da região norte paranaense, o culto ao pioneiro geralmente traz consigo pelo menos três agravantes. O primeiro deles, é a valorização apenas de determinados grupos sociais, excluindo outros. “No caso de Londrina, o destaque à população branca omite da memória o protagonismo, por exemplo, de afrodescendentes, de mulheres e outros grupos sociais que anonimamente construíram o que hoje se constitui no norte do Paraná”, avalia. “O segundo, é a transmissão da ideia de que a região era despovoada, havendo um grande vazio demográfico, ignorando a presença de populações indígenas, ou grupos originários, que ocorre há pelo menos três mil anos antes do tempo presente, com sua cultura, sua crença e seu modo de se relacionar com a natureza”, diz.

De três mil a mais de meio milhão

De uma clareira na mata com doze casas no Patrimônio Três Bocas em 1932, três mil moradores no ano da emancipação, em 1934 para mais de meio milhão de habitantes em 2023. O pesquisador Wander de Lara Proença tenta explicar o fenômeno partindo da ideia inicial do projeto britânico: o plantio de algodão para abastecer as indústrias têxteis da Inglaterra, seguindo modelo já utilizado na região do Sudão, no Oriente Médio. Mas o preço do algodão despencou, as sementes não eram boas e a produção também caiu.

“Vamos plantar cidades! Com estratégias que compuseram uma fórmula que deu certo”, comenta. O modelo de cidades-jardins, idealizado pelo urbanista Ebenezer Howard no século XIX, projetava cidades de porte médio, com não mais do que 25 ou 30 mil habitantes, com loteamentos rurais integrados ao espaço urbano, gerando a noção de que o indivíduo habitava o urbano, com acesso ao rural e quem estivesse no espaço rural, poderia desfrutar dos benefícios da cidade. Mais uma vez, publicidade!

CAFÉ

Com o café como chamariz para atrair milhares de pessoas para o norte paranaense, especialmente do interior de São Paulo e Minas Gerais, além de muitos estrangeiros. “Na primeira década eram cerca 33 grupos étnicos estabelecidos em Londrina; o transporte ferroviário gratuito, de Ourinhos a Londrina, completava a estratégia de atrair a quem tivesse interesse em visitar a região com o objetivo de compra. De outro lado, a política do governo brasileiro conhecida como Marcha para o Oeste, em um projeto de nacionalismo do governo Vargas que visava integrar o Brasil, abrindo ocupação nas fronteiras vistas como despovoadas e produtoras de riqueza. Londrina nasceu sob essa motivação do governo federal”, completa.

Atrás da riqueza, vinham outros pioneiros imprevistos e que a história local não gosta de lembrar. “A cidade não comportou a demanda de grupos e pessoas que chegavam diariamente, de forma escalonaria e logo viu crescer no seu entorno as periferias, reforçando desigualdades e conflitos sociais. Um crescimento acelerado e desordenado que levou a cidade a fugir do controle de seus idealizadores.

Nos anos de 1950, o aeroporto era o terceiro mais movimentado do País, com gente de todo o Brasil atraída pelos negócios do ‘ouro verde’ e pelo fascínio da vida noturna, com seus bares, cabarés e casas de prostituição. Figuradamente, a historiografia local costuma usar a expressão: ‘ervas-daninhas’ invadiram a ‘cidade-jardim’, para descrever a presença de um contingente indesejável e não previsto no projeto originalmente idealizado. Em circulação pelas ruas da cidade, surgiram práticas desviantes do modelo arquitetado, como por exemplo, a prestação de serviços para tratamento de saúde com ritos de curandeirismo, venda de remédios milagrosos, além do trabalho das benzedeiras.

A dificuldade de acesso à terra também gerou uma oferta de trabalhadores que precisaram sobreviver com a venda de mão-de-obra sem uma devida valorização. Há ainda os que foram expulsos do paraíso cafeeiro, sobretudo após a geada negra de 1975, que necessitaram buscar abrigo nas periferias urbanas. A integração entre o rural e o urbano, revelava desse modo uma outra face do ideário das cidades-jardins”, comenta o pesquisador.