Para aqueles que não pensam duas vezes antes de tachar o carnaval curitibano - mais especifificamente o desfile das escolas de samba na Cândido de Abreu - de pobre, ridículo e de mau gosto, a entrevista de hoje sugere uma reflexão do tema. A antropóloga Selma Baptista, professora doutora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concluiu em 2007 uma pesquisa sobre o carnaval de Curitiba, que se transformou num projeto de pós-doutorado da Universidade de São Paulo.

A idéia da pesquisa surgiu logo após a especialista ter participado, em 2005, de um grupo de trabalho (GT) organizado pela Fundação Cultural de Curitiba e com a participação de vários segmentos da sociedade e partes interessadas para ''pensar o carnaval da cidade''. O GT resultou num documento entregue à Câmara de Vereadores com propostas para a festa popular. ''Ocorre que durante as discussões descobri que questões que eram muito boas para se pensar não só o carnaval, mas a cidade de Curitiba e suas políticas públicas culturais'', resgata Selma.

A professora acompanhou a produção de duas edições do evento na cidade, em 2006 e 2007, e relata ter sido testemunha da paixão que toma conta dos barracões das escolas de samba, uma manifestação verdadeira que tem origem e história, ainda que não seja valorizada por todos. ''Aqui tem uma grande mistura de raças, mas é fato que as escolas de samba se constituíram com a presença maciça dos negros. Existe muito branco também. Conheci uma rainha de bateria que se chama Negra com sobrenome Pollak. Isso é a cara do carnaval de Curitiba'', define a antropóloga.


FOLHA DE LONDRINA - Concorda com o senso-comum de que em Curitiba não existe carnaval?
Selma Baptista - A gente tem impressão que não existe carnaval em Curitiba. Não sou paranaense, mas vivo aqui desde os anos 1960 e assisti a muitos carnavais de rua quando aconteciam na Marechal Deodoro. Quando eu estava trabalhando nesse GT pude ver outro lado do carnaval, representado em reivindicações das escolas de samba através da associação. Comecei a ver que não só existia aquele carnaval que a gente via na rua, mas toda uma articulação de bastidores em função da produção de um carnaval. Se existem escolas de samba é porque há vontade e organização para fazer o carnaval. Não se pode negar a existência de um carnaval. Agora, há uma série de considerações sobre esse caráter popularesco do carnaval na cidade.


FOLHA - Quais seriam essas considerações?
Selma - Paralelamente à existência concreta do carnaval, na verdade é um dos carnavais mais antigos do Brasil -há registros da sua origem na década de 1920-, passou a ser gerado um discurso sobre o carnaval, que é o que está na mídia, em depoimentos de vários intelectuais que escrevem à respeito da inexistência da festa e da vocação de Curitiba ao silêncio, à paz e à tranquilidade. Digamos que é uma cidade cujo destino é abrigar pessoas que gostam de pensar, gostam de música clássica, das artes. Não é dizer que não existem pessoas aqui assim. Acontece que esse se tornou, aos poucos, um discurso hegemônico de que a cidade teria esta vocação. A cidade, na verdade, tem muitas vocações. Fui em busca dessa outra face de Curitiba que não aparece no cartão de visitas, porque diferentemente do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, o carnaval daqui não é uma festa popular que conste nas agendas dos catálogos. Então Curitiba não tem esse tipo de fabricação, mas não é porque não tenha qualidade, unicamente, mas porque não interessa a cidade ter este tipo de cartão de visitas.


FOLHA - O que interessa a Curitiba, então?
Selma - Que seja conhecida como a cidade que tenha festival de teatro, de curta-metragem, oficina de música. Na verdade, isso tudo existe. Mas cadê o resto? Cadê as outras manifestações? Se dar valor às manifestações étnicas dos poloneses, ucranianos, italianos, japoenses, alemães. Há uma grande valorização de uma cidade multiétnica, mas se esquece, por exemplo, do negro, que é uma etnia. Se tentou a vida inteira ocultar essas manifestações não só étnicas, mas do carnaval da periferia, das pessoas pobres. Não estou aqui para julgar, mas para constatar, como antropóloga, que o carnaval existiu no Centro da cidade, nas ruelas, com confete e serpentina, com corso e tudo mais, de forma autêntica. Mas aos poucos, o centro foi sendo expurgado dessa ocupação. O centro tem uma tendência a ficar cada vez mais ''limpo'', mais arrumado ''para turista ver''. E essas coisas são empurradas para a periferia.


FOLHA - Essa é uma forma de dizer que o carnaval não é bem-vindo no Centro?
Selma - Tanto é que no carnaval passado a proposta da Prefeitura foi fazer o carnaval num dos bairros da cidade, que ele teve o maior eleitorado, para acabar com o carnaval no centro. Eles conseguiram, da década de 1970 para cá, que o carnaval saísse da Marechal por inúmeras razões - que o comércio não gosta, suja a cidade -, para o Centro Cívico, num pedacinho da Cândido de Abreu. Ora, acho isso assim até uma metáfora interessante para se pensar o carnaval de Curitiba porque o carnaval virou uma parada cívica, quase militar. Você tem o Palácio do Governo ao fundo, policiais aos montões fiscalizando, o palanque com as autoridades, só falta o padre benzendo o carnaval. Aonde está a cara carnavalesca disso? O chefe de cerimônia fica louvando num discurso ininterrupto o bem que o poder público faz ''permitindo'' aquela manifestação pública. Isso é a cara de Curitiba. Então essa manifestação teve uma reviravolta com a sugestão do prefeito, que pensou em fazer uma espécie de troca com o carnaval, como se fosse um produto. Eu estava na reunião quando essa proposta foi levada pelo presidente da associação e a reação das escolas foi violenta, disseram que não eram cabos eleitorais do senhor prefeito. Isso é para ver como existe uma manipulação da territorialidade urbana e uma luta de resistência para manter o que já foi conseguido.


FOLHA - Na sua pesquisa a senhora observa essa mudança, dos anos 1950 para cá, em três fases...
Selma - Não fiz uma pesquisa histórica. Delimitei isso a partir das entrevistas com Glauco Souza Lobo, Maé da Cuíca e Marlene Montecarmelo, que foram meus informantes mais antigos e que acompanham o carnaval desde daquele tempo e que têm competência para dizer isso. Depois do carnaval começar na Vila Tassi, envolvido com trabalhadores da ferrovia, vem uma segunda fase junto aos clubes de futebol, que abriram suas sedes para os ensaios.


FOLHA - Por que o carnaval permite ser tão controlado pelo poder público?
Selma - Depois dos anos 1950, o caráter popular se conectou aquilo que se chama de dialética do escravo e do senhor. Se você recebe um financiamento do Estado, fica sujeito as determinações do seu ''patrão''. E nesse caso a culpa não é totalmente da Fundação Cultural. Na medida em que as escolas de samba passaram a ficar mais dependentes de uma verba, cada vez mais mirrada, ficaram mais dependentes também das determinações do controle do carnaval pela Prefeitura e Fundação. São dois lados de uma moeda.


FOLHA - Muitos questionam por que investir num carnaval que é para poucos?
Selma - O carnaval do Rio, de Salvador e do Recife é de uma minoria que faz o espetáculo para a maioria assistir. Uma cidade inteira não está envolvida. Agora acontece com alma, com autenticidade. O carnaval não se investe porque pouca gente quer brincar, porque muita gente vai para a praia.


FOLHA - Existe um preconceito declarado da cidade com o carnaval?
Selma - A Fundação não sabe o que fazer com o carnaval. Isso já é uma coisa sintomática. Um órgão público dedicado a cultura que não sabe o que fazer com o carnaval. Eles, a cada ano, estão mais perdidos com a organização do carnaval. Isso já aponta para uma questão muito profunda. Curitiba é uma cidade que não sabe lidar com as manifestações verdadeiramente populares. Sabem organizar tão bem festival de teatro, oficina de música, mas não sabem organizar o carnaval. É de uma incompetência que chama a atenção, de erros crassos na organização do carnaval, então a coisa não pode dar certo.

FOLHA - Acredita que o carnaval é tão veemente negado por, hoje, ser feito pela periferia?
Selma - Existe obviamente um preconceito racial e de classe. Se trata de um carnaval muito controlador, cada vez mais exigindo prestação de contas, documentação. Uma burocratização tão grande que a periferia tem muita dificuldade em lidar com isso. Se começa a reforçar cada vez mais uma certa incompetência pra coisa, o que não deveria acontecer. Porque competência pra brincar e festejar todo mundo tem. Há uma incompetência para entrar dentro dos moldes burocráticos que o poder público prevê. Isso já é um contra-senso, o povo precisa provar que pode participar de uma festa carnavalesca, que são competentes para poder brincar e ocupar o centro da cidade uma vez por ano. Isso mostra o quão chocante é a concepção de carnaval em Curitiba. Na minha opinião, é uma festa fadada ao desaparecimento se não houver medidas urgentes.


FOLHA - A senhora faz duras críticas à Fundação Cultural na sua pesquisa...
Selma - Minha crítica é pontual do carnaval. Falta visão ao presidente. As pessoas são despreparadas porque são colocadas para gerenciar uma coisa da qual elas não tem conhecimento. Por exemplo, se faz o carnaval infantil nas periferias. Eu acompanhei os carnavais infantis de dois bairros que fazem as matinês e fiquei chocada. Aquilo lá não é carnaval, é uma festa pop, com um grupo de rock pop que faz aquele tipo de dancinha e as crianças fica fazendo as coreografias. Não tem nenhuma menção a uma festa carnavalesca. A política cultural correta é fornecer subsídios e não gerenciar a festa. Esse é um engano que a Fundação vem cometendo desde de sempre com essa idéia de ser a tutora de tudo que acontece.


FOLHA - Qual o perfil atual do carnaval de Curitiba?
Selma - O carnaval de Curitiba é um grande parto doloroso, quando chega por volta de outubro e setembro, começam as dores do parto, todo mundo começa a sofrer. Não se sabe muito bem o que fazer. O que achei interessante do carnaval de 2007 foi que ressurgiram alguns blocos como o 'Vai Na Rolha' e o 'De Repente', o que me pareceu um bom sinal.


FOLHA - A senhora acha que os blocos podem ajudar a resgatar a essência do carnaval?
Selma - Acontece que está havendo novamente uma confusão para o carnaval desse ano. O bloco não recebe verba então precisa prestar conta. Mas já está ocorrendo um controle até da participação dos blocos que para participarem precisam apresentar documentação para inscrição. A arena é livre, quem quiser fazer um bloco faz e vai lá brincar. Veja que o De Repente promoveu um dos momentos mais bonitos, para mim, do desfile do ano passado. Os carrinheiros participaram do bloco, com aquelas roupas improvisadas com coisas tiradas do lixo, as crianças sentadas em carrocinhas puxadas por cavalinhos enfeitados com plumas, mulheres desfilaram com abajur na cabeça. Escutei um comentário no palanque de que aquilo era uma coisa inaceitável. E eu achei a coisa mais incrível que eu tinha visto no carnaval. Eles usaram de um direito e no entanto foram considerada a parte mais feia do carnaval.


FOLHA - Quais seriam os desafios para o carnaval de Curitiba?
Selma - Eu não sei se existe alguma receita, mas o que está sendo feito não está dando certo. É preciso repensar um monte de coisas e voltar a autenticidade, para que haja mais liberdade, menos controle. Acho que a Fundação tem esse ranço, de ser responsável pela cara de Curitiba. Curitiba tem inúmeras caras e uma delas é a cultura periférica, que quer desfilar um dia do ano no centro da cidade. Perguntam mas por que tem que ser no centro da cidade? E eu pergunto, por que não pode ser no centro da cidade? Convivendo lá nos barracões e vendo o esforço e a luta para preservar essa tradição é difícil ficar alienado dessa questão. É preciso ter a liberdade de poder fazer um carnaval seja ele como for, bonito ou feio.