Seis décadas separam “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon, e o recente “O futuro ancestral”, de Ailton Krenak. À primeira vista, os livros são incompatíveis, tanto pela temática quanto pela postura de seus autores diante da vida e do mundo.

Fanon inventaria o violento processo de colonização dos países subdesenvolvidos, responsabilizando o colonizador pela miséria, pelo abandono, pelo destino ingrato dos famélicos do planeta. Krenak, em busca de um futuro que já esteve entre nós, faz uma ode aos rios, à grandeza daqueles que subjugamos em nome de uma ideia equivocada de progresso. As obras revelam jeitos distintos de encarar os desafios humanos. Mas há um ponto que as une umbilicalmente: o espírito rebelde.

Outro dia meu filho adolescente me perguntou sobre o anarquismo. Disse a ele que tenho restrições ao anarquismo como opção política, mas respeito profundamente seu espírito, ou seja, seu desejo eternamente insatisfeito, insubmisso, semeador de mudanças urgentes. Isso está presente em Fanon, no longínquo 1961, ano de publicação de seu “Os condenados da Terra”, e em Krenak, neste nosso imponderado 2022. Reúne-os um sentimento de amor ao mundo, de indignação permanente, de vontade de construir um “homem novo”.

Em Fanon, o “homem novo” depende de um processo radical de descolonização das mentes. Não basta tornar independente uma nação se não houver, paralelamente, um esforço por tornar livres as consciências, enaltecendo-as em criatividade e ancestralidade. Parece-me dizer o mesmo o inquieto Krenak, uma das inteligências mais sensíveis do Brasil contemporâneo. Para ele, autor de algumas das mais argutas reflexões sobre a relação entre o humano e a natureza, o futuro depende de um olhar para trás, para o instante em que renunciamos àquilo que há de melhor em nós. O futuro, nesse sentido, é um abraço na habilidade que ainda iremos demonstrar de humanizar nossas relações e sintonizar rebeldia e preservação ambiental.

Separados no tempo e no espaço, Fanon e Krenak conciliam a luta por um mundo melhor. As estratégias obedecem à historicidade, divergem, mas se encontram quando entra em cena o espírito rebelde dos velhos anarquistas, de todos aqueles que não se conformam, não entregam os pontos, insistem na mudança de tudo. Fanon era martinicano, negro e tornou-se psiquiatra. Krenak é brasileiro, indígena e uma liderança necessária nestes tempos de desejado aprimoramento dos sentidos e refinamento da sabedoria dos nossos antepassados. Aproximar os dois pensadores é um exercício de minhas leituras em busca de respostas às grandes indagações do presente. Ambos os livros aqui em questão abrem as portas da imaginação e escancaram nossa fragilidade, apontando quanto é imprescindível que busquemos companhias rebeldes em nossas lutas cotidianas por uma vida melhor.

Entre o psiquiatra e o indígena, faz-se humana a diversidade dos saberes e eleva-se em riqueza incomensurável nossas potências transformadoras. Fanon e Krenak simbolizam o que há de mais lúcido e belo em nós.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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