SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1984, a ditadura militar agonizava, e o economista Affonso Celso Pastore estava perto de encerrar sua gestão como presidente do BC quando recebeu uma visita de Luiz Carlos Bresser-Pereira, que então presidia o Banespa, o poderoso banco controlado pelo governo paulista.

Os dois se conheceram na USP e sempre tiveram visões diferentes sobre muitos assuntos, mas nada os angustiava mais nessa época do que o ritmo acelerado em que os preços subiam. "Eu fiz tudo para baixar a inflação, mas ela não baixou", lamentou Pastore ao se despedir do colega.

Bresser achava que tinha a solução para o problema, mas diz que se calou para não ser indelicado. "Fiquei ali com vontade de dizer: 'Se você tivesse lido meus dois papers, você teria entendido por quê'", conta o economista, que um ano antes deixara com Pastore seus trabalhos teóricos sobre a inflação.

O episódio é relatado num livro que será lançado na próxima semana, em que Bresser reexamina sua formação intelectual, fala das frustrações acumuladas em suas passagens pelo governo e discorre com ironia sobre as incontáveis ocasiões em que suas ideias foram ignoradas pelos que discordavam delas.

A obra é resultado de cinco longas entrevistas realizadas entre 2017 e 2019 pelo jornalista João Villaverde, que foi seu aluno, e pelo economista José Marcio Rego, professor da FGV, onde Bresser começou a dar aulas em 1959.

"Bresser-Pereira: Rupturas do Pensamento" apresenta o economista como um pensador inquieto e eclético, que em décadas de trabalho fundiu elementos de diferentes correntes de pensamento na tentativa de oferecer uma contribuição original para o entendimento dos problemas brasileiros.

Embora os dois discípulos não façam segredo da admiração que sentem pelo entrevistado, o livro revela também um intelectual disposto a refletir sobre suas contradições e os erros do passado -e deixa claro que Bresser prefere enfrentar as polêmicas a lidar com o descaso dos pares.

Formado em direito pela USP, ele desistiu de ser juiz para estudar economia ao conhecer as ideias nacionalistas do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), polo influente do pensamento progressista nos anos 1950 e origem de muitas teses que o economista defende até hoje com ardor.

Bresser fez mestrado na Universidade do Estado de Michigan, nos EUA, e doutorado na USP, mas por muito tempo se dividiu entre a carreira acadêmica e o setor privado. Começou a trabalhar no Pão de Açúcar em 1963, quando a rede estava nascendo, e foi seu diretor até os anos 1990.

Na década de 1980, participou dos debates sobre a inflação com uma série de artigos em parceria com Yoshiaki Nakano, também da FGV. Neles, a dupla analisava os mecanismos de indexação que alimentavam os reajustes de preços e sugeria medidas para combater esse efeito inercial.

Bresser teve chance de pôr em prática suas ideias sobre a inflação no breve período em que foi ministro da Fazenda de José Sarney. Ele assumiu em 1987, após o fracasso do Cruzado, promoveu novo congelamento de preços e se demitiu sete meses depois, quando a inflação subia 14% ao mês.

No livro, Bresser atribui o fracasso ao desalinhamento dos preços de vários setores da economia na época do congelamento, o que estimulava novas pressões por reajustes, e à falta de apoio do presidente para seu pacote de ajuste fiscal.

A inflação só seria derrotada na década seguinte, com o Plano Real, graças a um mecanismo engenhoso criado pelos economistas André Lara Resende e Persio Arida, ligados à PUC-Rio, para desmontar a engrenagem que alimentava reajustes de preços e salários.

Tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Henrique Cardoso, Bresser voltou ao governo como ministro da Administração e Reforma do Estado. No início do segundo mandato, foi demitido quando o presidente buscava espaço na administração para reacomodar as forças políticas que o apoiavam.

Decepcionado com o presidente, que dava de ombros para suas críticas frequentes à política econômica do governo, Bresser passou a dedicar mais tempo às atividades acadêmicas e iniciou um ambicioso projeto de pesquisa, em busca de um novo modelo para o desenvolvimento.

Batizado como Novo Desenvolvimentismo, ele é o assunto principal de vários capítulos do livro de entrevistas. Bresser reivindica para o modelo o status de uma nova teoria econômica, capaz de explicar o funcionamento do capitalismo e oferecer alternativas para governos de países periféricos como o Brasil.

Sua receita sugere manter o equilíbrio fiscal e adotar políticas que ajudem indústrias nacionais menos competitivas a crescer e enfrentar seus rivais estrangeiros, garantindo um câmbio que estimule investimentos domésticos e exportações, inibindo importações.

A leitura mostra que Bresser é acima de tudo um otimista, com uma crença quase inabalável nas boas intenções dos empresários nacionais e na capacidade do Estado de coordenar o processo econômico sem ser capturado pelos interesses dos grupos beneficiados por suas políticas.

"Não vejo como é possível um sistema capitalista funcionar sem que o Estado regule o mercado e planeje os setores não competitivos do sistema econômico --setores que o mercado não tem como coordenar", ele diz. "O Estado desenvolvimentista precisa administrar preços macroeconômicos, mantê-los certos."

Bresser angariou simpatia na esquerda nos últimos anos, mas frustrou-se com os governos petistas. "Tentaram ser desenvolvimentistas, mas não tiveram forças para mudar o regime de política econômica que é liberal desde 1990", diz. "Revelaram total desconhecimento de minhas ideias."

Na campanha presidencial de 2018, Bresser se aproximou do ex-ministro Ciro Gomes, que adotou como principal assessor econômico outro de seus discípulos, o professor Nelson Marconi. Bresser promoveu um encontro em que Ciro e o petista Fernando Haddad debateram suas propostas desenvolvimentistas.

A eleição de Jair Bolsonaro, que classifica como uma tragédia, parece ter abatido seu ânimo. "Estamos diante de um grande fracasso nacional."

Embora mantenha a fé nas suas ideias, ele se diz pessimista sobre a capacidade de executá-las: "Hoje está claro para mim que nem a direita nem a esquerda são capazes de fazer o Brasil retornar ao desenvolvimento".

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Bresser-Pereira: Rupturas do Pensamento

João Villaverde e José Marcio Rego. Editora 34 (400 págs.). R$ 76