Uma resolução publicada e divulgada em maio pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) ampliou o acesso à cirurgia bariátrica e metabólica a quem convive com a doença e não teve acesso ao tratamento completo. Passaram a figurar na lista de elegíveis adolescentes a partir de 14 anos com obesidade mórbida e complicações clínicas, além de adultos com o tipo leve e doenças associadas à obesidade.

Anteriormente, só poderiam ser submetidos ao procedimento pacientes com o IMC (Índice de Massa Corporal) acima de 35 e quadro de saúde relacionado, ou acima de 40 tendo ou não comorbidades. Para adolescentes de 16 a 18 anos, os requisitos passaram a ser os mesmos estabelecidos para adultos. O IMC é a divisão do peso em quilos pela altura em metros ao quadrado .

De acordo com o relator da Resolução CFM nº 2.429/25, Sérgio Tamura, 60% das crianças obesas possuem tendência para atingir a obesidade mórbida, sendo benéfica a intervenção em casos bem indicados. “Hoje há comprovação científica que a cirurgia bariátrica e metabólica é segura na população, como estabelecido na resolução, produz perda de peso durável, melhora as comorbidades e não atrapalha o crescimento dos adolescentes”, detalhou.

Ele destacou que a cirurgia bariátrica não impacta negativamente no desenvolvimento da puberdade ou no crescimento linear.

GRANDE AVANÇO

Mariano Menezes, cirurgião do Serviço de Cirurgia Bariátrica da Santa Casa de Londrina, explica que os critérios para o diagnóstico não têm focado mais somente no peso do paciente. “Hoje a gente faz uma busca na presença de doenças. São 260 associadas à obesidade, como diabetes, pressão alta, colesterol, esteatose hepática, doença do refluxo, apneia do sono, artropatia. Então, quanto mais doente a pessoa, mais obesidade ela tem e mais grave é a doença dela”.

O especialista reforçou ainda que o grande avanço da portaria do CFM é justamente tirar “a responsabilidade do peso e passar a ter o protagonismo da doença. Isso é maravilhoso, porque hoje a gente consegue ofertar o melhor tratamento para o paciente obeso, independente do peso que ele tem”.

QUEM DEVE SER TRATADO

Outra mudança recente é quem deve ser tratado, pontuou o médico. “São as pessoas que têm obesidade e as doenças associadas. Esse tratamento, inicialmente, sempre é clínico, com orientação nutricional, prática desportiva regular e medicação. Você fez o tratamento por três, seis meses, se não está respondendo, talvez seja um bom candidato para a cirurgia”.

Conforme o cirurgião, a resolução deve ser incorporada no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Agência Nacional de Saúde Suplementar “nos próximos meses ou anos, aí eu acredito que vamos começar a ter a liberação e realmente fazer a cirurgia”. Disse ainda que a procura por informações em seu consultório particular aumentou após a publicação do Conselho.

DOENÇA CRÔNICA

A obesidade é uma doença crônica e progressiva sem cura, mas tratável, caracterizada pelo excesso de gordura no corpo, que pode causar impactos negativos na saúde. O principal indicativo é um IMC igual ou maior que 30.

Para confirmar o diagnóstico, também é levado em consideração a circunferência abdominal (risco quando maior que 88 na mulher e que 94 no homem) e o Índice de Adiposidade Corporal, que estima a porcentagem de gordura.

A doença é dividida em três tipos conforme a gravidade, sendo leve e de grau 1 quando o IMC está entre 30 e 34,9, moderada e de grau 2 quando se encontra entre 35 e 39,9 e mórbida e de grau 3 quando ultrapassa 40.

A última atualização havia sido feita em dezembro de 2017. A bariátrica é usada como tratamento da obesidade e de doenças metabólicas. Entre 2020 e 2024, o Brasil realizou 291 mil procedimentos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM).

Mariano Menezes, cirurgião do aparelho digestivo: critérios para o diagnóstico não têm focado mais somente no peso
Mariano Menezes, cirurgião do aparelho digestivo: critérios para o diagnóstico não têm focado mais somente no peso | Foto: Heloísa Gonçalves

‘NÃO É O CORPO QUE EU QUERIA TER'

Cauê Dellalibera, 18, é um dos pacientes de Menezes e se submeteu a intervenção bariátrica em março de 2024 após quase dois meses de acompanhamento médico multidisciplinar. Graduando em Administração, o adolescente “sempre foi gordinho”, mas teve muito ganho de peso por conta de ansiedade e depressão, o que o levou a ter fortes crises no final de 2023.

Aos 17 anos, marcava 125 quilos na balança e queria uma mudança em sua vida. “Comecei a ter um pouco de depressão por conta do peso e a me comparar com os meus amigos. Começou a ficar bem difícil pra mim a socialização, me ver no espelho e falar ‘esse não é o corpo que eu queria ter’. A cabeça não estava legal mesmo”.

O jovem contou que já sofreu bullying por conta da obesidade grave e “tentou emagrecer de todo jeito”. Disse que nunca foi sedentário, sendo que já tinha acompanhamento nutricional na época e praticava esportes regularmente. “No final do ano, em 2023, ele não queria mais sair do apartamento pra ir para a praia, não queria tirar a camiseta. Ele chorava pra pôr roupa, não queria comprar porque não servia”, relembrou a mãe de Cauê, Camila Junco.

A empresária mostrou ao filho o relato de um adolescente que havia passado pela cirurgia, que encontrou em uma reportagem, e Cauê se animou em iniciar o tratamento médico para, posteriormente, ser submetido ao procedimento. Além do nutricionista e endocrinologista, começou a se consultar com um psicólogo. Como era menor de idade, seus pais também passaram pela terapia.

MENOS FOME E MAIS SACIEDADE

O médico Mariano Menezes realizou a cirurgia robótica no jovem, que é minimamente invasiva. A dieta no pós-operatório foi líquida no início, passando de água de coco, suco e bebida proteica, a caldo de frango, comida batida no liquidificador e carne moída. O estômago demora 60 dias para cicatrizar completamente, e a restrição no que é ingerido impede que as linhas de costura se abram novamente.

“Como nos sete primeiros dias o estômago e a ferida estão moles, eu não posso dar comida sólida. Depois vamos entrando com uma dieta branda até voltar ao normal, que por volta de mais ou menos 40 dias, a pessoa já está apta a comer a ‘comida da mesa’ e liberamos para fazer uma atividade física de esforço”, elencou o médico.

Cauê Dellalibera com a mãe, Camila Junco: “A autoestima, a respiração melhoraram 100%"
Cauê Dellalibera com a mãe, Camila Junco: “A autoestima, a respiração melhoraram 100%" | Foto: Heloísa Gonçalves

Ao reduzir o tamanho do estômago e alterar a anatomia intestinal, a operação modifica 23 hormônios relacionados à obesidade, atuando em nível mitocondrial. “Isso faz com que a pessoa tenha menos fome e mais saciedade. Ela consegue levar a alimentação saudável à frente, o que não conseguia no passado, e não é porque ela tinha preguiça ou má vontade, é porque tinha um desarranjo hormonal que fazia com que ela tivesse mais fome, menos saciedade e com que a célula não trabalhasse, ou seja, ela acumulava gordura mais facilmente do que uma pessoa normal”, explicou Menezes.

AUTOESTIMA MELHOROU 100%

O colesterol alto, refluxo gastroesofágico e gordura no fígado de Cauê deram lugar a exames normais sem déficit nutricional. Hoje, com 18 anos e 57 quilos a menos (pesa 68), é consultado por Menezes a cada seis meses e se considera uma pessoa mais saudável, mental e fisicamente, praticando esportes e se atentando à uma boa alimentação.

“A autoestima, a respiração e para dormir, melhoraram 100%. Eu gosto muito de jogar bola e tênis, antes eu cansava demais, agora jogo tranquilo, não dói nada na perna, joelho e coluna”, comemorou o adolescente. A mãe brincou que agora Cauê “compra roupa até demais, porque tudo fica bonito, tudo veste bem”.

FILA EM LONDRINA

A resolução do CFM também detalhou exigências para os hospitais que oferecem a cirurgia bariátrica, que devem possuir UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) e plantonista 24 horas. Em pacientes com IMC acima de 60, a instituição precisa ter estrutura física adaptada e equipe experiente para evitar complicações.

Conforme a Secretaria de Saúde de Londrina, 93 pessoas estão na fila para serem submetidas ao procedimento pelo SUS, sendo 89 na Irmandade da Santa Casa e quatro no HU/UEL (Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina) com autorização de internação emitida.

Existem ainda 1.026 munícipes na fila para a primeira consulta médica, que pode ou não levar a cirurgia. A Santa Casa oferta 60 atendimentos mensais, com o HU oferecendo quatro. A fila está em processo de requalificação, a depender dos interessados confirmarem se ainda precisam da intervenção.

'BOMBA-RELÓGIO'

Eliani Angelosi, 52, foi submetida à cirurgia bariátrica em outubro de 2022 na Santa Casa, quando pesava 112 quilos. Como sequela da Covid-19, motivo de ter permanecido entubada por 38 dias, a técnica de enfermagem sofreu perda da capacidade motora e só conseguia se locomover com uma cadeira de rodas. Também tinha uma ferida no pé causada pela diabetes que quase levou a amputação do membro, além de pressão e colesterol altos.

“Ela estava com um grau de perda visual por retinopatia diabética, também uma doença renal crônica que estava evoluindo e estava caminhando para a hemodiálise”, relembrou o médico Mariano Menezes.

Angelosi tomava 18 comprimidos diariamente, além de dois tipos de insulina por dia. “Os médicos falavam que eu era literalmente uma bomba-relógio, porque a minha diabetes e pressão viviam muito altas, coisa bem absurda mesmo”, lembra. "É duro ouvir isso, que pode explodir a qualquer momento. Eu ficava com medo de não chegar a ver meus netos, porque eu sabia que não tinha uma perspectiva de vida longa”, acrescentou.

Angelosi disse ainda que a obesidade afetava todos os aspectos de sua vida, principalmente a autoestima. “Eu tinha muita vergonha, não tirava uma foto, na hora de comprar roupa era terrível."

Eliani Angelosi: "Não é só uma mudança de corpo, é uma nova perspectiva de vida"
Eliani Angelosi: "Não é só uma mudança de corpo, é uma nova perspectiva de vida" | Foto: Heloísa Gonçalves

'OUTRA PESSOA'

Ela enfrentou seus receios e iniciou o acompanhamento médico, mesmo com o risco de morrer na mesa de cirurgia por conta das comorbidades. “Um ano depois da cirurgia ela entra aqui no consultório andando. Fez um tratamento da retinopatia e voltou a enxergar normalmente, e estava fazendo atividade física. A obesidade, diabetes, hipertensão e dislipidemia (gordura no sangue elevada) controladas sem medicação,” relatou Menezes.

O médico considera o caso de Angelosi o mais emblemático de sua carreira, afirmando que, sem a intervenção, a mulher “estaria em uma máquina de diálise, cega, com a perna amputada e morreria em um ano”.

Para ela, a cirurgia a concedeu uma nova chance de viver, com 60 quilos a menos na balança. “Ela não é só uma mudança de corpo, é uma nova perspectiva de vida. Hoje eu sou outra pessoa, não tomo remédio nenhum, a não ser minhas vitaminas, sem falar na autoestima que vai lá em cima. Quando eu me vi em um beco sem saída, a cirurgia bariátrica foi a minha salvação”. (Com Agência Brasil e Folhapress)

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