Celso Lopes de Souza, psiquiatra: "Quando colocamos na cabeça de uma pessoa que ela é responsável pelas atitudes que toma, estamos ensinando a autonomia"
Celso Lopes de Souza, psiquiatra: "Quando colocamos na cabeça de uma pessoa que ela é responsável pelas atitudes que toma, estamos ensinando a autonomia" | Foto: Divulgação



O incêndio no Ninho do Urubu, como é conhecido o CT (Centro de Treinamento) do Flamengo, no Rio de Janeiro, comoveu o país ao causar a morte de 10 adolescentes que sonhavam com uma carreira no futebol, oportunidade única que mexe com o desejo de muitos brasileiros. Sair de casa cedo é comum em carreiras que buscam jovens talentos, mas tragédias como essas trazem o receio de dar liberdade aos filhos para que aproveitem suas chances longe da proteção dos pais. A decisão deve ser tomada com base na avaliação sobre autonomia e responsabilidade.

O médico psiquiatra Celso Lopes de Souza é defensor do desenvolvimento socioemocional em crianças e adolescentes nas escolas, mas enquanto este processo ainda está em evolução é preciso orientação da família. "O mais importante é que os pais conheçam os filhos e tomem essas decisões juntos. Às vezes, um jovem de 15 anos está preparado e outro não está. Nossa idade cronológica nem sempre corresponde a um grau único de maturidade", afirma.

Souza é fundador do Programa Semente, método de desenvolvimento socioemocional aplicado em alunos e educadores de escolas brasileiras. Questões como sociabilidade, autoconhecimento, autocontrole, empatia e decisões responsáveis são trabalhadas em sala de aula, contribuindo para a alfabetização emocional. Em entrevista à FOLHA, Souza falou sobre a educação familiar, efeitos das notícias negativas nas decisões de pais e responsáveis e a importância do desenvolvimento de autonomia e independência nos jovens para que possam perseguir seus sonhos com responsabilidade.


- Notícias de tragédias e acidentes com adolescentes geram impacto na relação familiar?
Toda tragédia, envolvendo adolescentes ou não, produz uma grande sensação de perda. Isso funciona como um gatilho para os estados emocionais da tristeza, como a solidão, a desesperança e a angústia. Acho que vale a pena sempre destacar que ninguém se prepara para as grandes tragédias, principalmente as tragédias que invertem a ordem natural das coisas. Por exemplo, é mais ou menos esperado que os filhos um dia percam os pais, percam os avós, e não o caminho oposto. E toda morte por acidente causa uma sensação de inesperado que é comum a esse tipo de acontecimento. É aí que a gente fala que a tristeza é uma emoção que nasce dessas situações, porque a tristeza vem de uma percepção de perda. Por se tratar de uma situação que afeta a todos os integrantes da família, esse tipo de perda tem poder de impacto muito negativo em todos os integrantes do grupo.
 
 
- Como grandes perdas podem se tornar aprendizados?
Elas costumam gerar dois movimentos. O primeiro é uma tentativa de resgatar aquilo que foi perdido (pode acontecer, por exemplo, quando a gente termina um relacionamento). No caso de uma tragédia como Brumadinho, não existe como resgatar o que foi perdido, então essa perda pode gerar outro movimento, o aprendizado. Não exatamente para as pessoas que sofreram a perda, mas para a sociedade como um todo, que é o aprendizado do por que isso ocorreu. Já que era uma tragédia evitável, o que pode ser feito para que aquilo não se repita? Infelizmente, quantos acidentes de avião foram necessários para que o avião se tornasse um transporte mais seguro? Já para essas famílias, essa perda é muito difícil de ser aceita, porque a gente tem uma sensação muito grande de injustiça. A tristeza nos ensina e, em geral, é uma emoção que faz com que se reforcem os laços entre as pessoas que ficam. Então, por mais desesperadora que seja essa situação, a tristeza tem isso para nos ensinar. Ela mostra que esse estabelecimento de relações positivas é o que existe de mais importante na vida. Certamente os vínculos entre aqueles que ficam serão fortalecidos.
 

- Quais são as dificuldades em desenvolver autonomia nos adolescentes hoje?
Acho que a coisa mais importante é a gente definir o que é autonomia. Porque, no final das contas, nunca nossas decisões são completamente autônomas, a gente sempre é influenciado pelo meio a nossa volta, pelos nossos amigos, pelos nossos familiares, pelos meios de comunicação. Talvez o jovem seja ainda mais influenciável do que o adulto. Então quando a gente fala de construir autonomia de uma criança, de um pré-adolescente, de um adolescente, o que é fundamental? Tomar decisões responsáveis, fazer escolhas sensatas, medir as consequências de nossos atos, avaliar as vantagens e as desvantagens dos prazeres imediatos e das recompensas de longo prazo são aprendizados constantes. Quanto mais habilidade desse tipo adquirimos, mais autônomas serão nossas decisões.
 
- Como equilibrar autonomia e limite?
Não existe fórmula mágica. Crianças e adolescentes não vêm com manual de instrução. O que sabemos é que desenvolver nos jovens competências socioemocionais, como autocontrole e empatia, é um passo importante para que os limites sejam construídos, e não impostos. É preciso ensinar para essas crianças que as nossas atitudes têm consequências para nós, para os outros e para a sociedade. E mais do que isso, que elas têm consequência de curto prazo e a longo prazo. De repente, uma atitude pode trazer uma consequência muito boa de curto prazo para mim, mas algo muito negativo no longo prazo para os outros e para a sociedade. Boas decisões são aquelas que de alguma forma equilibram tudo isso. Então, quando a gente fala de preparar um jovem para o mundo e a gente pensa em autonomia, é isso, que ele esteja preparado em momentos decisivos da vida dele apesar de tudo isso e tomar essas decisões. Mas isso é um aprendizado do dia a dia. Começa emprestando um brinquedo na primeira infância e chega ao ponto de usar ou não drogas na adolescência. É claro que para construir essa autonomia, é como se a gente fosse soltando a corda aos poucos, e é por tentativa e erro que vemos se o adolescente já está preparado para tomar certas decisões. Então, esse equilíbrio entre a liberdade e a repressão é muito importante. Quando a gente consegue colocar na cabeça de uma pessoa que ela é responsável pelas atitudes que ela toma, estamos ensinando essa pessoa a ser autônoma. Isso é o que existe de mais importante.
 
- Essa é uma atribuição exclusiva dos pais?
Não. Isso é uma atribuição compartilhada. É claro que os pais têm um papel muito importante nisso, mas a escola, os amigos, as redes sociais, os meios de comunicação, tudo isso acaba influenciando a construção dessa autonomia. Não existe um "botão" que a gente liga e fala "agora essa pessoa é madura, agora ela é autônoma", na verdade, é como se fosse um controle de volume, as pessoas vão ganhando mais maturidade, mais autonomia, e esse tem que ser o nosso objetivo.
 
 
- Adolescentes que vivem em um contexto de superproteção terão prejuízos no futuro?
Pode ocorrer. Mas é preciso salientar bem o verbo "pode". Dificilmente, problemas pessoais ou profissionais que se manifestam na fase adulta têm uma única causa. É preciso tomar cuidado com as relações apressadas de causalidade. É claro que o excesso de proteção pode trazer prejuízos, mas como eu falei, é muito difícil isolar essas variáveis e dizer que eventualmente um adulto com problemas de relacionamento é assim "por causa" da superproteção dos pais. Normalmente esses eventos têm causas multifatoriais. A superproteção parece que vai na contramão dessa ideia de deixar o jovem sair de casa para realizar o sonho de se tornar jogador de futebol, por exemplo. Mas não existe uma fórmula mágica para isso. Por isso, o mais importante é que os pais conheçam os filhos para que tomem essas decisões junto com eles. Às vezes um jovem de 15 anos está muito preparado para isso e outro não está. Então ele pode desenvolver essa capacidade. Nossa idade cronológica nem sempre corresponde a um grau único de maturidade.