Nada como uma pandemia para se esvaírem fantasias as mais esdrúxulas. De repente, queremos que entre o médico e saia o monstro. Mas precisamos ampliar o horizonte científico no trato dessas questões humanitárias, do contrário nos sujeitaremos a uma tirania revestida de técnica, ou ainda, a uma técnica da tirania.

Em 1934, Marcel Mauss fez uma comunicação para uma plateia de psicólogos, que ficou conhecida como “As técnicas do corpo”. Nela, aventava a possibilidade e a pertinência de as ciências sociais se debruçarem sobre esse objeto inusitado que compõe o título da comunicação.

A dimensão bio-fisiológica do corpo é evidente, quanto mais para uma sociedade tão narcísica como a ocidental. A psicologia, na época de Mauss, fazia avanços notáveis em entender fenômenos psíquicos que provocavam sintomas corporais bastante visíveis. Mauss propunha uma terceira dimensão, abrindo um campo de investigação interdisciplinar, na interseção das dimensões bio-fiosiológicas, psíquicas e sociais.

O primeiro passo sobre esse terreno até então desconhecido seria uma enfática desnaturalização dos movimentos, gestos e disposições corporais. A maneira como nadamos, andamos ou subimos montanhas não tem nada de natural. Entre os exemplos usados por Mauss, estava o das francesas que andavam de punhos cerrados. Vejam, dizia ele, isso é evidência de como a socialização se inscreve nos corpos. Essas moças, o mais provável é que estudaram em colégios católicos, pois seus educadores desposavam a ideia de que andar de mãos abertas remetia à animalidade. Às meninas, muito mais que aos meninos, cabia demonstrar contenção. Uma das formas era esta, a de andar de punhos cerrados.

Interessante é que, embora relativas a uma concepção de mundo particular, uma vez apreendidas, dificilmente nos desvincilhamos dessas técnicas corporais. A maneira como utilizamos nossos corpos nos parece absolutamente normal. Quando andamos canalizamos nossa atenção alhures, como para os sinais de trânsito, para as pessoas com quem conversamos, ou, enfim, para aquilo que elegemos como destino ao iniciar a caminhada.

As técnicas corporais, sintetiza o autor, são atos tradicionais e eficazes. São tradicionais, pois herdados e repetidos à exaustão, a ponto de se naturalizarem. São eficazes, pois nos permitem atingir os objetivos que estipulamos, do contrário, não os reproduziríamos.

Mas há aí um aspecto interessante e intrincado. Aventurando-se na prática do alpinismo, Mauss relata seu esforço em controlar seus sentidos e emoções nas alturas e diante da possibilidade iminente de uma queda fatal. Naturalmente, quando o ser humano se depara com situações como essa, sua reação psíquica e fisiológica mais imediata é absolutamente inadequada – se afoba, quer sair correndo ou faz força excessiva. Seus movimentos corporais são erráticos e quase involuntários. Foi no treino e na socialização com alpinistas mais experientes que Mauss adquiriu as técnicas corporais necessárias para chegar ao topo das montanhas.

Daí o autor postular que é graças à sociedade que existe uma intervenção da consciência. Treinados e socializados, mobilizamo-nos de maneira eficaz, mesmo nas situações as mais adversas. O risco da fatalidade deixa de guiar nosso comportamento e nos orientamos, mental e corporalmente, segundo um objetivo conscientemente estipulado.

Eis a ponte para pensar sociologicamente situações de catástrofe, desastres ou pandemias. Entender melhor as técnicas corporais enseja uma reflexão para além da urgência de nos trancarmos em casa sob a vigilância do Estado para não sermos vetores (inertes) de microrganismos invisíveis. Nos chama a pensar sobre como educaremos nossas gerações futuras e com quais objetivos humanitários.

Daniel Guerrini, professor de Sociologia na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Londrina