O Ministério da Saúde anunciou a distribuição de 128,6 milhões de camisinhas nas unidades básicas de saúde em todo o país para a prevenção das ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e do HIV durante o Carnaval. Porém, nos últimos anos, ONGs e associações que lidam diretamente no enfrentamento às infecções se veem diante de velhos desafios como driblar o conservadorismo e lutar contra propagação de estigmas relacionados aos portadores do vírus.

Imagem ilustrativa da imagem Contexto político dificulta prevenção à aids
| Foto: Cleber Cordeiro/IStock

Para o vice-presidente da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), Veriano Terto Júnior, o debate deve ser ampliado durante o ano todo para garantir a manutenção de políticas públicas para o setor e a ampliação de recursos nas ações de combate às doenças. Estima-se que 900 mil pessoas vivam com HIV no Brasil, porém 135 mil ainda não sabem que foram infectadas pelo vírus. O HIV pode desencadear a aids. Em média, 39 mil novos casos de aids são registrados por ano no país, segundo o último balanço divulgado pelo Ministério da Saúde.

Como você avalia esse cenário atual de prevenção à aids?

Nós vemos as políticas de prevenção atualmente com preocupação. Há um contexto cada vez mais conservador que dificulta ou impede completamente a conversa sobre temas relacionados à sexualidade, as práticas sexuais, a homossexualidade, a diversidade sexual, principalmente com pessoas mais jovens em escolas. Esse mesmo contexto conservador começa a prejudicar a prevenção porque coloca em descrédito ou afasta a pessoa da informação científica e isso acaba sendo preocupante. É difícil hoje em dia falar sobre métodos de prevenção, PREP [Profilaxia Pré-Exposição ao HIV], PEP [Profilaxia Pós-Exposição ao HIV], questão de estratégias comportamentais como soronegociação, "serosorting" [prática sexual de pessoas com a mesma sorologia], por exemplo. Quando a gente fala sobre essas coisas acaba sendo até um escândalo. Mas a gente sabe que também são caminhos que as pessoas usam e que podem ser importantes para pelo menos diminuir os riscos de infecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis.

Por outro lado, as políticas do governo não só estão sendo desmontadas como o que fica vai sendo descolada cada vez mais de uma perspectiva de direitos humanos. Não se vê a prevenção como um direito das pessoas, o tratamento em si como um direito. A declaração do presidente [Jair Bolsonaro] sobre essa ideia que uma pessoa com HIV é uma despesa para o país... O tratamento é um direito das pessoas a partir do momento em que elas pagam os seus impostos.

Essa afirmação é muito desrespeitosa e cruel, principalmente, com pessoas que estão doentes. Imagino pessoas que estão no hospital lutando pela vida, lutando pela saúde, pagaram os seus impostos, cumpriram com seus deveres como cidadão e ouvem esse tipo de coisa. Primeiro, há esse aspecto ético e moral, vamos dizer assim, da questão. Depois tem a violência contra os direitos. Há o impacto de aumentar e reforçar estigmas e preconceitos que já existem sobre ou contra uma população que já é muito estigmatizada, que já sofre com a ideia que já estão doentes por um efeito de castigo, punição por coisas "erradas" sob a perspectiva conservadora que elas tiveram. É importante que a população procure a informação correta e científica e não se deixe levar somente por valores morais que não nos previnem do vírus.

Desde o ano passado, populações mais vulneráveis desapareceram das campanhas. As campanhas são dirigidas à população mais geral. Como é que eu mobilizo esses grupos?

A aids, como outras doenças epidêmicas, não depende só das pessoas buscarem individualmente o serviço e uma ajuda. Depende de uma mobilização coletiva da sociedade. Afinal, ela é uma epidemia, um fenômeno social mais amplo.

Se eu desapareço com essas pessoas das campanhas, das políticas, trato com preconceito e trato com discriminação, não só aumenta o estigma como desmobiliza e dificulta o engajamento tanto individual quanto coletivo desses grupos para buscar a saúde, o cuidado, a atenção. Isso tudo é preocupante também.

Dados do Ministério da Saúde apontam para o diagnóstico, em média, de 39 mil novos casos de aids por ano no Brasil. Nos últimos anos, a quantidade de confirmações tem diminuído, mas você acredita que a aids possa ser vista como uma epidemia negligenciada?

Não sei se a palavra seria exatamente negligenciada. Acho que um fenômeno como a aids toca em tantos pontos não só relacionados à doença, mas também a comportamentos ou valores, há tabus dentro dessa sociedade e, com isso, um desengajamento que é ativo nesse contexto conservador. São poucas pessoas, grupos ou instituições que realmente se mobilizam para enfrentar os desafios tanto no aspecto clínico, social e comportamental como econômico que um fenômeno como a aids apresenta. É um problema social que envolve muitos setores diferentes. Isso sim pode se encaminhar para uma doença negligenciada. Principalmente, por essa complexidade, essas multifaces que um fenômeno como a aids traz que diz respeito à sexualidade, a comportamentos, a valores e tabus.

É preciso mais mobilização e não só o apelo a soluções técnicas. Não adianta eu ter o remédio se eu não tenho condições sociais e políticas, principalmente, para implementar essas soluções. A sífilis, que também é uma doença altamente complexa e que praticamente não tem mobilização nenhuma, é um exemplo disso. Temos cura para a sífilis, temos medicamento, mas o país enfrenta sim uma epidemia. Poderia dizer que essa é uma doença negligenciada porque há pouca mobilização e participação e a gente assiste ao crescimento do número de casos em silêncio, o que é pior.

No caso do HIV, mesmo com o tratamento gratuito, ainda há muitas desistências. Quais seriam os principais motivos?

Há um crescimento nas taxas de abandono, mas a gente tem que pensar o que leva a esse abandono. Primeiro, teríamos que qualificar se é um abandono permanente ou um abandono temporário. Isso é muito importante até para não julgar as pessoas que não estão aderindo. Às vezes, é um abandono intermitente que acontece por períodos, então precisamos entender melhor essa questão.

Segundo, nós temos esse desmantelamento do SUS, uma confusão no que nós chamaríamos de política de descentralização ou compartilhamento de cuidados em relação ao tratamento da aids. Há uma confusão em relação a isso, toda hora com mudanças, transferências ou descentralizações para a atenção básica. Isso tudo acarreta em prejuízo para o usuário, a insegurança no tratamento, o despreparo dos profissionais, a circularidade muito grande na atenção básica, porque muitas são geridas por OSS [Organizações Sociais de Saúde], então os contratos são precários, as pessoas ora estão em um lugar, ora estão em outro. A ideia de vínculo com a população acaba ficando muito frouxo.

Nessa questão de descentralização, muitas vezes a pessoa é indicada para se tratar em um serviço que ela não quer, por exemplo, no seu próprio território que pode não oferecer condições de confidencialidade. Tudo isso leva as pessoas a se sentirem abandonadas. Muitas vezes o profissional não está preparado para ouvir, lidar com essa dimensão de sofrimento e de dor porque a gente está falando com pessoas estigmatizadas, sob forte preconceito, aliado a esse perfil tem pessoas pobres, que podem ser negras, que podem ser mulheres em situação de forte machismo. Isso tudo acaba tornando o tratamento mais complexo e o abandono acontece. Não temos, o que a gente chamaria no Brasil, uma pedagogia de tratamento.

Como seria essa pedagogia?

Educar tanto profissionais quanto pacientes e familiares sobre o que é um tratamento de HIV. Como iniciar o tratamento, como estar juntos, como inserir essa questão de cuidado com outras estratégias que as pessoas têm com seus projetos de vida. A gente tem um protocolo que é muito bom, mas ele não pode se valer de um escrito na pedra. Tem que haver uma margem de negociação maior para individualizar o tratamento de acordo com a situação de vida da pessoa. Muitas vezes isso não acontece.

O que as associações e ONGs têm feito para manter viva a luta de combate à aids e ISTs em meio a esse cenário nacional?

A Abia [Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids] foi fundada em 1987 e há 33 anos realiza trabalho de produção e disseminação de informação, acompanhamento das políticas públicas de aids e saúde, temos o Observatório Nacional de Políticas de Aids e ainda o trabalho de advocacy, luta por acesso ao tratamento.

Nós voltamos a trabalhar com a noção de sexo seguro, que é a ideia de trazer outra vez a discussão do sexo e da sexualidade para a prevenção. Procuramos reagir criando espaços de fala como seminários, workshops e rodas de conversa onde as questões da aids são discutidas de forma interdisciplinar, intersetorial e depois nós publicamos os resultados dessas conversas, desses debates como forma de alimentar uma discussão mais ampla e contribuir para uma mobilização dos poucos grupos que ainda se mobilizam, mostrar um posicionamento diferente à corrente dominante que o governo federal traduz e alimenta. Isso é o que a gente faz. É pouco, mas é o que dá, é o que nós conseguimos.

Cada vez mais nós resistimos ao fechamento, mas muitas ONGs estão fechando as portas, às vezes em silêncio, pela falta de recursos. De uma forma geral, são poucos os recursos destinados às ONGs. Há uma burocracia cada vez maior que o acesso aos recursos públicos exige, que muitas vezes, estão em desacordo à natureza e ao funcionamento que as ONGs têm. As ONGs têm um papel fundamental que é esse de engajamento da população para aderir às políticas públicas, para aderir ao tratamento e à prevenção, de criar um ambiente social, cultural, político para que a gente possa implementar boas práticas, boas ações de prevenção e de assistência. As ONGs complementam as inovações governamentais, elas têm acesso a populações muito mais marginalizadas, aquelas mais vulneráveis, conseguem canalizar as necessidades dessas comunidades e mobilizá-las para que elas se mobilizem. O fechamento é uma perda.