Desde o dia 17 de janeiro, quando a “agulhada” no braço da enfermeira Mônica Calazans, de São Paulo, marcou o início da imunização contra a Covid-19 no país, mais de 90 milhões de brasileiros já receberam ao menos uma dose da vacina – o que equivale a quase 44% da população. Já o número de pessoas com a proteção completa – duas doses ou a dose única da Janssen – ainda não chega a 18% dos cidadãos. No Paraná, os números são de 46% e 16%, respectivamente. Em Londrina, até um pouco melhores – 51% com a primeira dose e 21% da população já com a segunda dose ou dose única. Aos trancos e barrancos, a vacinação vai caminhando.

Imagem ilustrativa da imagem O velho anormal - Avanço da vacinação cria clima de fim de pandemia antecipado
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Como efeito, os números da doença apresentam a tendência de queda esperada. No primeiro dia de junho, 282 novos casos haviam sido confirmados em Londrina. No dia 20 de julho, eram 138. Os óbitos caíram de 15 para 5 no mesmo período e a ocupação das UTIs Covid SUS londrinenses, que chegaram a 98%, hoje estão em 75%. “Com certeza a vacinação tem impacto nessa queda, já que grande parte dos pacientes que precisam de cuidados mais intensivos na emergência dos hospitais hoje correspondem às pessoas que ainda não tomaram sequer uma dose da vacina”, explica o infectologista Ronaldo Cunha, destacando também que, apesar da diminuição, os números seguem considerados altos. De fato, no início de junho, 78.926 novos casos foram confirmados no Brasil, com 2.408 mortes. Em 20 de julho, foram 27.592 novos casos e 1.424 mortes. “Ainda temos uma quantidade absurda de gente morrendo em decorrência do vírus. Não dá para deixar de ter cuidado com essa doença por enquanto”, alerta Cunha.

Apesar da advertência, o clima nas ruas destoa da preocupação do médico. O mecânico Ailton Borges já tomou a primeira dose da vacina. A segunda está programada para a metade de agosto, mas ele admite que boa parte dos cuidados que tinha ficaram para trás. “Em alguns lugares eu acabo tirando a máscara, aquela coisa de limpar as compras deixamos de fazer em casa, alguns amigos já vem visitar. A gente vai relaxando”, confessa. No caso da vendedora Marli de Souza, a previsão é de que a vacina tão esperada venha em agosto. No entanto, quando foi abordada pela reportagem, a máscara já estava descansando no pescoço. “É muito tempo vivendo tudo isso, vai cansando. Tem que ficar mais atenta, só que geral não respeita, não sou só eu”, reclama.

Segundo a antropóloga Maria Cristina Neves, a explicação está na essência do ser humano. “Nós somos impacientes, ansiosos por natureza, e intransigentes. A pandemia se arrasta desde março do ano passado. Já experimentamos essa onda de ‘tá tudo normal já’ no segundo semestre de 2020, quando não tínhamos vacinação e os números de casos e mortes haviam caído. Claramente foi um erro, porque a segunda onda veio com tudo. Você calcule agora, com a imunização crescendo e as mortes caindo”, explica. Para Neves, apesar disso, muitas pessoas ainda estão respeitando os protocolos. “Vejo bastante gente engajada. É uma questão de compromisso consigo mesmo e com a sociedade”, observa.

Na luta diária para que distanciamento social e regras de higiene sejam seguidas, há casos que chamam a atenção. Shows, festas em boates e outros tipos de aglomeração ainda estão proibidos em todo o país, o que não impediu uma casa de swing – isso mesmo, swing, a prática de sexo entre casais ou trocas de parceiros – no Rio de Janeiro ser interditada com nada menos que 300 pessoas, no último fim de semana, na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade. O estabelecimento foi multado e interditado pela Vigilância Sanitária por tempo indeterminado devido a aglomeração e também foi autuado por consumo de cigarro em ambiente fechado e funcionamento como boate. Desde o início do ano, 150 festas e eventos clandestinos foram encerrados pela Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio.

Em São Paulo, no mesmo dia, o Comitê de Blitze do governo do estado e da prefeitura da capital encerrou um evento clandestino, no bairro de Santo Amaro, ainda mais lotado – 1.500 pessoas estavam animadamente aglomeradas. E não foi o único: na Vila Olímpia, outras 350 pessoas bebiam, dançavam e descumpriam as medidas sanitárias em outro local. Somente no último fim de semana, a Vigilância Sanitária paulista inspecionou 24 estabelecimentos – nove foram autuados. Por aqui, uma festa com mais de 80 pessoas foi encerrada pela Polícia Militar de Londrina, no final de junho. Assim como no inusitado evento carioca e nos clandestinos paulistanos, não havia o uso de máscara ou a observação de qualquer medida sanitária para evitar a proliferação coronavírus.

“A queda de casos e mortes e a imunização crescendo passam a falsa sensação de proteção, mas é preciso cautela, principalmente dos mais jovens, que hoje representam a maior parcela de internados nos leitos de Covid. Temos que alcançar uma parcela maior da população imunizada para que os riscos sejam reduzidos de forma definitiva”, esclarece o infectologista Ronaldo Cunha. O cuidado é essencial porque, mesmo vacinadas, as pessoas ainda podem transmitir o vírus. “Por isso, manter o distanciamento e o uso de máscaras é crucial”, complementa Cunha. E o que ele acha das festas? “Um absurdo”, resume. “É claro que a pessoa imunizada tem menos riscos, mas temos que pensar em quem ainda não foi vacinado e também no risco de uma nova variante. Imagine se, a essa altura, de uma festa dessas, surgisse uma cepa resistente às vacinas que temos? Vai ser o caos mundial, com risco de voltarmos à estaca zero em todo o planeta”, ilustra.

Maria Cristina Neves diz não se iludir. “Lidar com o ser humano é difícil. Ele sempre vai querer driblar as regras, se achar invencível, pensar primeiro em si mesmo. Então, esse tipo de festa, o comportamento das pessoas, sinceramente não me surpreende. E não são só essas festas. É na rua, no mercado, nas práticas esportivas, nos restaurantes e bares. Em todo canto vemos gente já desencanada da pandemia. O risco é ter um aprendizado pela dor, seja ficando doente ou perdendo alguém próximo. Por isso acho que o caminho da consciência, do respeito ao coletivo, é sempre o melhor a se escolher”, avalia a antropóloga. E você, é do time dos ainda preocupados, do “novo normal”, ou dos já desencanados, do “velho anormal”?

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