Se o trabalho doméstico fosse remunerado, em um ano, essa atividade renderia mais de R$ 600 bilhões em todo o País. O valor corresponde a mais de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e mais do que se gasta hoje com a Previdência Social. Esse trabalho invisível ainda é realizado majoritariamente pelas mulheres, que são responsáveis por 83% dos afazeres do lar, diz Jordana Cristina de Jesus, hoje professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). O trabalho doméstico foi o tema da sua tese de doutorado, defendida na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A pesquisadora Jordana Cristina de Jesus: "no Brasil a gente tem hábitos culturais em torno do trabalho doméstico que lidam com um padrão muito alto, com o padrão de uma casa arrumada, de uma casa limpa. Quanto maior o padrão, mais as mulheres precisam se dedicar"
A pesquisadora Jordana Cristina de Jesus: "no Brasil a gente tem hábitos culturais em torno do trabalho doméstico que lidam com um padrão muito alto, com o padrão de uma casa arrumada, de uma casa limpa. Quanto maior o padrão, mais as mulheres precisam se dedicar" | Foto: Arquivo Pessoal

Os hábitos culturais brasileiros impõem uma carga de trabalho ainda maior às mulheres, pois prezam por um padrão elevado de ordem e limpeza. E o fato de mais mulheres hoje trabalharem fora não quer dizer necessariamente que homens aumentaram a sua participação no trabalho doméstico, o que leva a crer que mais mulheres podem estar trabalhando até a exaustão.

Para a pesquisadora, o tema precisa ser trazido à tona para fomentar discussões sobre igualdade de gênero e de políticas públicas que ajudem as famílias a conciliar trabalho remunerado e trabalho doméstico. "Como as mulheres terão os mesmos salários, os mesmos empregos se elas têm que se dedicar ao trabalho doméstico?”, provoca.

Na sua tese a sra. fala sobre o trabalho doméstico, que muitas mulheres fazem dentro de casa e que muitas vezes não é valorizado.

A ideia de trabalhar com a questão do trabalho doméstico foi trazer (o assunto) para a visibilidade. Essa atividade é invisível principalmente porque é feita em casa. Como ele faz parte da rotina, ninguém se dá conta da quantidade de trabalho que está sendo feito, que envolve todo o planejamento para manter um domicílio funcionando. A gente tem hoje no Brasil algo como 60 milhões de domicílios. Quando a gente começa a discutir trabalho doméstico a ideia é trazer para a visibilidade para que todo mundo perceba a sua quantidade e importância. Também é necessário falar sobre isso porque a gente sabe que a casa é quase toda responsabilidade das mulheres. O que a tese demonstra é que a gente tem quase 83% do trabalho doméstico feito por mulheres. A gente precisa discutir isso, tirar da invisibilidade, pensar formas de equalizar essa distribuição que é perceptível como desigual. Todo mundo tem 24 horas para organizar a vida, e quando um grupo enorme de mulheres tem que usar uma parte do dia para cuidar do domicílio, e isso sequer é reconhecido, a gente vê o quanto a gente ainda tem que avançar nessa temática.

Então as mulheres continuam sendo protagonistas desse trabalho doméstico. A sra. acha que isso é reflexo de quê? Isso no Brasil é diferente de outros lugares do mundo?

Muito é reflexo da forma como a gente cria o sujeito, como homens e mulheres são criados. Como desde crianças as mulheres já são treinadas para trabalhos domésticos, a gente fica com essa ideia de que é natural que uma mulher faça trabalho doméstico. Essa naturalização é feita ao longo de toda a história. Quando nasce uma criança e ela é menina, e com 1 ou 2 anos de idade ela já recebe brinquedos que na verdade refletem tarefas domésticas, o que a gente está fazendo é treinando as meninas desde muito novas para desempenhar essas atividades. Esse treinamento é muito intensivo na criação das meninas e praticamente nulo na criação dos meninos. Importante ressaltar que o trabalho que envolve a maternidade também é considerado trabalho doméstico.

Essa não é uma especificidade do Brasil. Na verdade, acontece em diferentes medidas em vários outros lugares do mundo. O que é importante para discutir na realidade brasileira é que no Brasil a gente tem hábitos culturais em torno do trabalho doméstico que lidam com um padrão muito alto, com o padrão de uma casa arrumada, de uma casa limpa. Quanto maior o padrão, mais as mulheres precisam se dedicar. Mas a desigualdade acontece no mundo inteiro. A gente não tem um país no mundo onde a divisão de trabalho doméstico seja igualitária.

Na sua pesquisa a sra. verificou alguma evolução nessa desigualdade?

Tem uma indicação para saber se há de fato uma melhoria porque não é todo lugar que tem uma boa métrica de quanto tempo as pessoas fazem de trabalho doméstico. Mas o país que tem um histórico com essas pesquisas, nos últimos 50 anos a gente observa que houve uma redução da distância entre a quantidade (de trabalho doméstico) feita por homens e mulheres. A gente está sim caminhando para a igualdade, mas a gente caminha por isso por duas formas. Primeiro porque de fato os homens assumem uma parcela um pouco maior das atividades domésticas, mas principalmente porque as mulheres estão fazendo menos. Como as famílias estão ficando cada vez menores, as pessoas têm cada vez menos filhos, a demanda dentro de casa também diminui.

A sra. está falando aqui não só do trabalho doméstico feito por mulheres que se declaram donas de casa, não é? Todas as mulheres em algum nível fazem algum tipo de trabalho doméstico?

Quando a gente fala de trabalho doméstico, talvez em um primeiro momento as pessoas pensem na figura da mulher que só fica em casa. Mas não são só essas mulheres que fazem trabalho doméstico. As mulheres que têm algum tipo de trabalho remunerado, que trabalham fora de casa, também fazem trabalho doméstico, mulheres de baixa e alta escolaridade, mulheres de baixa e alta renda. Não existe um grupo de mulheres que não faça trabalho doméstico. Pode variar a quantidade feita em alguns grupos, mas todas as mulheres fazem trabalho doméstico no Brasil.

Essas mulheres que trabalham fora acabam fazendo uma jornada dupla, às vezes até tripla.

A gente tem cada vez mais mulheres que trabalham fora de casa, participam com renda em casa da mesma forma que seus parceiros. Estão contribuindo para o bem-estar financeiro de suas famílias, mas em contrapartida os homens não passaram a fazer mais trabalho doméstico. Uma jornada comum (das mulheres) é chegar seis, sete horas da noite, e até 22 horas ainda estar cuidando de casa. Se a gente contar as horas de trabalho durante a semana, as mulheres trabalham mais do que os homens. Só que sem reconhecimento, sem renda associada.

A gente multiplicou todas as horas feitas ao longo do dia em um ano inteiro e multiplicou por quando pagaria para contratar alguém para fazer esse serviço. Esse valor equivale a quase R$ 600 bilhões. Isso é mais que 10% do PIB brasileiro, que é a soma de tudo o que um país produz. Ou seja, 10% de tudo o que o País produziu poderia ser só o que as mulheres fizeram em casa cuidando dos seus domicílios. R$ 600 é mais do que a gente gasta com a Previdência no Brasil. A gente tem milhões de aposentados e tudo o que a gente paga para eles é menos que todo o trabalho feito pelas mulheres.

Muitas mulheres que preferem trabalhar em home office para poder cuidar das crianças, dar conta do trabalho que têm que fazer em casa. Agora com a pandemia, muita gente está trabalhando em casa, inclusive os homens. A sra. acha que com isso as pessoas terão um olhar razoável em relação ao trabalho doméstico?

Eu acredito que sim. Essa não é uma visão só minha. Na verdade, a gente tem um conjunto de pesquisadoras que vêm afirmando que a pandemia vai mudar o modo como a gente percebe o trabalho doméstico. As mulheres muitas vezes já tentam conciliar o trabalho remunerado e o não remunerado. A pandemia chega com esse choque e coloca os homens dentro de casa para ver como são os domicílios com as crianças que estão em casa. Algumas pesquisadoras acreditam que isso pode gerar sim uma mudança de comportamento, trazer valores feministas. A gente tem uma estatística de que o consumo de gás aumentou em 24% (na pandemia). Pensa então a quantidade de trabalho doméstico envolvido nisso. É mais refeição sendo feita, mais louça para lavar, para guardar. Todo trabalho doméstico em todos os domicílios foi aumentado e aí os homens são convidados a participar. De alguma forma o trabalho doméstico está ficando evidente para os homens. A gente vai precisar de mais pesquisas para entender o que se passou nessa pandemia. Será que os homens aumentaram a participação ou será que as mulheres ficaram trabalhando até a exaustão? Eu espero que as pesquisas futuras apontem para que tenha acontecido uma divisão melhor em casa.

A sra. acha que a visibilidade do trabalho doméstico pode influenciar políticas públicas, decisões econômicas no País?

Essa é uma tentativa que a gente está sempre fazendo com essas pesquisas. Quando a gente tenta evidenciar o que acontece nos domicílios, é também para pensar em políticas públicas, como as políticas públicas podem ajudar as mulheres com a questão da restrição de renda, para que elas não sejam penalizadas. Como as mulheres terão os mesmos salários, os mesmos empregos se elas têm que se dedicar ao trabalho doméstico? A nossa ideia é que várias políticas possam ser alteradas para se adequar à realidade das famílias. A gente precisa parar de pensar que trabalho doméstico é uma responsabilidade feminina.

Estudar isso cientificamente é para discutir que essa é uma necessidade a nível familiar. Todas as famílias precisam resolver o assunto do trabalho doméstico, e existem políticas públicas que podem facilitar a conciliação das famílias entre trabalhar fora de casa e dentro de casa. A gente precisa de apoio para as mães, precisa de creche de qualidade, que ofereça refeição não só quando a criança chega, mas antes dela ir para casa, que é para que a mulher quando chegar em casa depois de um dia longo trabalhando, não tenha que preparar uma refeição que dá muito trabalho. A ideia é diminuir a desigualdade entre as famílias pobres, porque hoje as ricas já conseguem obter no mercado apoio para que as mulheres estejam fora de casa.

Ouça a entrevista completa

Folha de Londrina · O trabalho doméstico e o PIB