Informações falsas transmitidas por meio das redes sociais podem ter consequências desastrosas na família, no trabalho, nas relações entre amigos e até mudar os rumos de um país. Para filtrar essa avalanche de desinformação propagada com celeridade, o Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) criou o projeto “Eleições sem fake”.

Imagem ilustrativa da imagem Tecnologia e informação no combate às fake news
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A proposta quer dar mais transparência aos conteúdos divulgados. Porém, para as eleições municipais de 2020, os desafios são muitos a começar pela quantidade de municípios existentes: 5.570. O coordenador do projeto, Fabrício Benevenuto, doutor em Ciência da Computação, afirma que a tecnologia aliada ao jornalismo de qualidade e à punição aos propagadores de notícias falsas podem auxiliar o combate às fake news.

Como surgiu o projeto “Eleições sem fake”?

O projeto nasceu no Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) no laboratório de Computação Social, que é o laboratório que eu coordeno. Desde 2009 já temos artigos que buscam detectar o comportamento malicioso e atacar esses problemas que surgem dentro das redes sociais. Mas o problema no passado eram mensagens de spam e o cenário se tornou realmente uma guerra de informações. A gente vem atuando em diferentes eleições sempre com um aspecto muito acadêmico, com soluções que funcionam segundo métodos científicos desenvolvidos dentro do ambiente do laboratório e publicado em conferências e revistas revisadas. Vendo o vazio político e o que aconteceu nas eleições dos Estados Unidos, sentimos a necessidade de, nessas eleições de 2018, começar a ter uma abordagem diferente. Essa abordagem consistiu em desenvolver sistemas reais e colocá-los em operação ao longo das eleições para trazer transparência para as campanhas políticas que ocorrem dentro desse espaço midiático, dentro dessas plataformas digitais e mais especificamente dentro das redes sociais e de aplicativos de trocas de mensagens como WhatsApp.

Como funcionam os sistemas que estão sendo desenvolvidos pelo projeto?

Um sistema que nós desenvolvemos é o monitor de propagandas no Facebook. A ideia desse sistema foi construir um banco de dados público onde ficariam vários anúncios, principalmente, os feitos durante o período eleitoral. Caso algum candidato inventasse alguma informação, inventasse alguma história, colocasse fake news, uma desinformação e anunciasse isso dentro do Facebook, que é uma ferramenta muito poderosa, a gente poderia identificar. Como criar um banco de dados desse? O que a gente fez foi criar um mecanismo para facilitar que voluntários repassem as propagandas vistas por eles para uma base de dados tornada pública. A gente desenvolveu dois plugins para os navegadores Chrome e Firefox e os usuários instalaram. A partir daí, toda propaganda passou a ser enviada automaticamente para o banco de dados e a gente torna essas propagandas públicas.

O Facebook implementou uma solução semelhante em que os candidatos que quisessem fazer propagandas através da plataforma que eles desenvolveram e essas propagandas políticas durante o período eleitoral ficaram públicas em uma base de dados. O que é interessante é que a nossa é uma base independente, construída de fora e é uma amostra diferente dessa que se vê no Facebook. Lá são as propagandas autodeclaradas como propagandas políticas. No nosso caso, a gente tem todo tipo de propaganda e a gente pode identificar propagandas políticas até mesmo irregulares que foram feitas no período eleitoral sem obedecerem às regras do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Nos Estados Unidos, esse foi um espaço bastante utilizado. Teve até propagandas russas que foram feitas próximo às eleições. Então estamos falando de interferências externas no processo eleitoral. Esse tipo de sistema que nós construímos traz transparência e permite identificar caso alguma dessas campanhas aconteçam.

Um segundo sistema é o monitor de Whatsapp que é uma tentativa de trazer transparência para esse espaço. O WhatsApp é um aplicativo de troca de mensagens particulares e, por isso, é criptografado. O que é interessante é que mesmo ele sendo criptografado e voltado para mensagens privadas, ele permite que um conteúdo possa viralizar. Esse conteúdo pode atingir a rede inteira, ou seja, todo mundo pode saber sobre o que aconteceu dentro de uma conversa privada, o que é paradoxal. Isso acontece porque o WhatsApp criou diferentes ferramentas que são típicas de redes sociais. Essa criação de grupos que podem ter várias pessoas é um caminho pelo qual a informação se propaga. O WhatsApp permite o repasse das imagens para outros grupos, para outras pessoas. É um sistema complexo por todas essas características, é novo e foi talvez o sistema mais utilizado durante as eleições de 2018 aqui no Brasil. É um sistema que requer muita atenção porque tende a ser usado novamente nas eleições municipais.

Outro sistema que nós construímos foi o monitoramento da presença de bots (postagens automáticas) em hashtags que atingem o trending topics no Twitter. A ideia é ver se aquela hashtag só chegou ao trending topics porque um conjunto de bots a colocou por lá. Com a técnica que a gente usou para identificar se um perfil é um bot ou não, nós não encontramos muitos bots, mas podem existir bots no Twitter que estejam imitando muito bem o comportamento humano e, por isso, estão sendo difíceis de serem detectados. É uma evolução desses mecanismos criados para disseminar a informação.

O que esperar da CPI das Fake News?

A Câmara dos Deputados é um espaço democrático onde a questão das notícias falsas, que é um problema de grande relevância na nossa sociedade atual, precisa ser debatida. Eu espero que essa CPI possa também apontar um direcionamento e um planejamento de ações para as próximas eleições.

É possível combater fake news diante desse excesso de informações diárias e da rapidez em se comunicar?

Acho que há uma série de medidas que podem ser feitas para resultar em uma diminuição do problema. Uma primeira atuação é através da checagem de fatos. É importantíssimo que as notícias falsas sejam identificadas e que surjam reportagens que mostrem que aquilo é uma mentira. Isso pode, no mínimo, inibir uma nova postagem. Quando uma pessoa que compartilha uma notícia falsa é confrontada com a verdade, ela pode aprender um pouco com essa situação, mudar o seu comportamento e não espalhar as notícias falsas. Ela passa a ter um cuidado maior.

O segundo é o que a gente chama de "media literacy", que é o processo de ensinar as pessoas a como lidar com um conteúdo falso, não acreditar em qualquer coisa. Há uma espécie de dificuldade maior na nossa sociedade em identificar que uma imagem, por exemplo, foi falsificada. Acho que o texto todo mundo já entende que aquilo pode ser falso, mas a imagem é muito forte. Você vê uma imagem, vê alguém sendo colocado ao lado de uma outra pessoa e algo assim é muito impactante. Acho que não cabe mais o "tem que ver para crer". Agora mesmo quando a gente vir não dá para crer. Então acho que esse é um ponto que tem que ser ainda mais desenvolvido na nossa sociedade e nós todos temos que aprender a lidar com tudo isso.

Acho também que soluções tecnológicas como as que a gente criou e casadas com amarras legais do legislativo e do judiciário são caminhos importantes para que se tenha mais transparência e formas de identificar os autores ou mesmo campanhas que iniciaram um processo de desinformação ou difamação de algum candidato. Acho que é por aí. É construir caminhos para que quem está por trás dos conteúdos seja identificado. É claro que não dá para punir as pessoas que compartilham porque acreditaram naquilo. É preciso buscar a origem, encontrar quem está financiando tudo isso. Possivelmente, esse dinheiro é irregular, ilegal e financiado por caixa 2. É preciso identificar e assim punir. Esse é um dos caminhos que eu acredito que sejam mais promissores.

Como o projeto se prepara para as eleições 2020?

As eleições de 2020 oferecem um enorme desafio em termos de detecção de notícia falsa. O primeiro grande problema é que, no caso das propagandas impulsionadas, elas podem ser impulsionadas em diferentes cidades, em diferentes bairros e isso torna muito mais difícil o trabalho de identificar que uma propaganda é irregular. No nosso caso, 2 mil pessoas instalaram os nossos plugins nos navegadores Chrome e Firefox e enviaram propagandas pelo nosso banco de dados. Para a gente cobrir todas as cidades brasileiras, a gente teria que ter pelo menos uma pessoa que instalasse o plugin em cada uma dessas cidades, o que é muito difícil. Então, a gente tem a expectativa de divulgar mais a nossa ferramenta para ampliar o monitoramento. Porém, ao mesmo tempo, a gente sabe que o desafio é muito maior.

Uma outra expectativa é que o Ministério Público Eleitoral ou algum órgão responsável adote esse tipo de mecanismo que a gente criou. De certa forma, o que a gente fez com os nossos sistemas é uma prova de conceito e essa estratégia pode funcionar. Se ela tiver um apoio institucional, ela claramente pode ter um impacto muito mais expressivo e até mesmo ajudar em eleições municipais. No caso do nosso monitoramento de WhatsApp fica praticamente impossível fazer um monitoramento para cada cidade. O que a gente deve fazer é focar em algumas e monitorar grupos públicos que surgem sobre algumas eleições municipais. Não daria para monitorar o Brasil inteiro. O caminho é muito mais complexo. Ao mesmo tempo, há um grande motor para a existência das notícias falsas que é essa polaridade. Isso movimenta campanhas de desinformação porque aí até mesmo ativistas passam, às vezes, a criar conteúdo falso. A polarização que a gente viu nas eleições presidenciais pode ser que se reflita também nas eleições municipais. E aí todo o processo vai acontecer novamente em cada região do Brasil.

Qual a importância do papel do jornalismo diante desse cenário?

O jornalismo de qualidade tem um papel fundamental no combate às fake news para levar até a casa das pessoas a informação verdadeira. É preciso acabar imediatamente com esse processo de descrença nos grandes veículos da imprensa brasileira. Esse é um dos pilares da desinformação. Essa desconstrução em que você tem com grupos de pessoas discutindo informação dentro das suas bolhas favorece a disseminação de notícias falsas. Esses grupos não acreditam, muitas vezes, na informação que chega na grande mídia porque houve uma desconstrução dessa grande mídia e a grande mídia é que teria um papel bastante relevante para dizer "não , essa aqui é uma informação falsa" e fazer as pessoas se convencerem de que aquilo é uma informação irrelevante, falsa, que alguém está tentando inventar. Acho fundamental que a gente desconstrua essa descrença sobre a grande imprensa brasileira. Isso é fundamental para reduzir as campanhas de desinformação.