A humanidade vive uma era digital que possibilita a troca frenética de mensagens e consumo descontrolado. A desinformação generalizada desenvolve uma histeria coletiva no mundo digital, que desperta certa irracionalidade e leva as pessoas a acreditarem nas informações sem ao menos checar a veracidade, onde o real se confunde com o irreal, e já não há mais controle de tudo que está nas redes. Nas últimas semanas as redes sociais foram alvos de diversos memes mencionando uma suposta Guerra Mundial entre os EUA e Irã, devido a um ataque com bombas. É necessário compreender que esse comportamento está associado ao contexto atual, que permite uma conexão virtual muito rápida entre os usuários.

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. | Foto: Atta Kenare/APF

Em entrevista com o psicólogo, psicanalista, doutor em Sociologia professor da FURG (Universidade Federal de Rio Grande), Fábio dal Mollin, ele revela um panorama complexo e cheio de interesses por parte daqueles que incentivam a Guerra, incluindo o meio digital e as informações espalhadas através delas. Quanto aos rumores que surgiram, apesar de estarmos num conflito ideológico também “O que podemos fazer é voltar a cultivar espaços de encontro, de solidariedade, fomentar outros modos de produção, de comunicação e de encontro entre as pessoas”.

Imagem ilustrativa da imagem Qual a real Guerra que estamos enfrentando?
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Há risco de uma nova guerra mundial?

As guerras em geral possuem dois elementos: o econômico e o ideológico. Um não existe sem o outro. Quem financia um exército o faz para conquistar novos territórios, obter lucro no comércio e consumo de armamentos ou angariar espólios dos vencidos. Aqueles que lutam no front arriscam suas vidas por isso. Para tanto surgem as motivações nacionalistas, religiosas ou étnicas como uma espécie de combustível.

Cientistas políticos como Eric Hobsbawn e Zygmunt Bauman afirmam que as duas grandes guerras Mundiais foram o verdadeiro início do século 20. A Primeira Guerra teve como mote ideológico um conflito nacionalista, enquanto a Segunda Guerra foi fortemente marcada por questões étnicas. Em ambas, os Estados Unidos da América participaram estando a um oceano de distância e mantendo seu parque industrial intocado e funcionando a pleno vapor. O que pouca gente fala é que a Segunda Guerra Mundial foi fundamental para salvar a economia que havia sido destruída pela quebra da Bolsa de Valores de 1929 nos EUA, pois um armistício de tal proporção, além de armamentos, exige mantimentos, vestuário, transporte e, principalmente, comunicação, tudo isso impulsionado por desenvolvimento tecnológico.

Todas as nações europeias e orientais envolvidas no conflito sofreram graves prejuízos materiais e financeiros com os bombardeios, parques industriais inteiros foram sucateados, enquanto os EUA, além de tudo, deram asilo político a grandes cientistas alemães que incrementaram ainda mais sua indústria bélica, entre eles os idealizadores das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki.

Tanto a crise de 1929 quanto o nazismo e as revoluções comunistas da China e da Rússia foram frutos de problemas da grande desigualdade social, e o mundo ocidental do pós-guerra se reestruturou para evitar novas insurreições e teve início aquilo que os sociólogos chamam de "os 30 gloriosos". Sob a batuta econômica e ideológica dos EUA e da Inglaterra, uma parte do planeta experimentou seu apogeu de desenvolvimento industrial, tecnológico, financeiro e social. É claro que tudo foi às custas da total exploração das colônias africanas, do sudeste asiático e da América Latina, todas fornecedoras de fartas reservas de minério, petróleo, terras cultiváveis e mão de obra barata ou semiescravizada.

A grande questão atual é que tudo isso está se esgotando. A sociedade humana consumista dos séculos 20 e 21 se desenvolveu através do esgotamento de recursos materiais não renováveis do planeta e da enorme, e cada vez maior, concentração de renda. As sucessivas revoluções tecnológicas que tiveram início no século 19, associadas com a necessidade do barateamento da mão de obra e das mercadorias, tiveram como consequência inevitável um fenômeno que iniciou com força nos anos 70 e veio para ficar, e provoca hoje o pesadelo dos economistas políticos: o desemprego estrutural e a formação de uma gigantesca massa de seres humanos não mais desempregados, mas "inempregáveis", inúteis e desnecessários, sem nenhuma capacidade de venda de sua força de trabalho.

É quase unanimidade entre os cientistas políticos que se debruçam sobre as crises do capitalismo: a porção humana do planeta está prestes a entrar em um colapso: há cada vez menos trabalho humano a ser explorado, bem como recursos naturais. Calcula-se que o PIB da produção material do mundo inteiro seja de 200 trilhões de dólares e o PIB financeiro, ou seja, de existência apenas virtual, seja da ordem de 1 quadrilhão. Em 2030 teremos mais de 800 milhões de seres humanos considerados supérfluos pela economia capitalista.

Um exemplo disso é a Amazon e o Google. Se entrarmos na loja virtual da livraria e adquirirmos um e-book, esta operação não terá nenhum trabalhador humano envolvido. Atualmente o Google, a maior empresa do mundo, possui em torno de 50 mil empregados, e estima-se que em uma década será uma inteligência artificial autônoma.

O que fazer com essa enorme massa de seres humanos substituídos por máquinas?

Como explicar o comportamento atual em relação aos rumores de uma Terceira Guerra Mundial?

Eu cito aqui dois filósofos importantes, um brasileiro e um camaronês. O brasileiro é Marildo Menegat, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Menegat, a partir do que eu disse na pergunta anterior, afirma que capitalismo chegou em uma fase em que as questões clássicas modernas, de manutenção de uma sociedade desenvolvida, de bem-estar ou de emprego não interessa mais.

A guerra possui componentes e econômicos associados a um combustível ideológico. Na verdade, a existência humana pode ser definida assim: nossa vida é composta por elementos materiais e concretos, mas sem a linguagem como suporte simbólico jamais seríamos capazes de sequer definir o que é ser humano.

Os reais motivos dos EUA entrarem em conflito com países como Venezuela, Afeganistão e Iraque são simples e estão até no senso comum: energia e rotas comerciais. São os mesmos da Segunda Guerra, porém com uma terrível novidade: resta pouco planeta para explorar e as grandes corporações que financiam a guerra já não estão mais interessadas em manter a sociedade de consumo e o capitalismo.

Segundo outro filósofo famoso, Bruno Latour, é óbvio que a negação do aquecimento global ou o terraplanismo são um disfarce, uma cortina de fumaça. O que os grandes acumuladores de capital do mundo estão fazendo é uma aposta: o que acaba primeiro, o planeta ou o capital.

Aqui recorro ao camaronês Achille Mbembe, que recentemente publicou um ensaio muito famoso no meio acadêmico chamado "Necropolítica". Em linhas gerais Mbembe considera que a era do "humanismo" iniciada na revolução francesa acabou e que todas os conflitos bélicos atuais apresentam como característica o puro e simples extermínio de sujeitos considerados desnecessários.

Nos anos 70, Michel Foucault cunhou o termo "biopolítica" que seria o governo e a demonstração da vida pelo controle do estado, das grandes empresas e das ciências biológicas, estatísticas e humanas. Mbembe diz que não há mais interesse em governar e controlar as massas inempregáveis, e sim em exterminar. Para tanto basta analisar países da África subsaariana produtores de platina, ouro, diamante ou outros metais preciosos, assim como a Síria, o Iraque e o Afeganistão: tais países hoje já não constituem mais nações autônomas e independentes e seus refugiados hoje se espalham pelo mundo todo, inclusive migrando para países também em guerra como o Brasil. Sim, eu afirmo, estamos em guerra. Todo ano 60 mil mulheres e homens são assassinados no Brasil, em sua maioria jovens negras e negros que habitam zonas urbanas sem nenhuma assistência do Estado. Isso não é por acaso.

Eu repito: a parcela do planeta habitada pelo homo sapiens caminha cada vez mais para uma situação em que os 10% que controlam 90% da riqueza decidirão o que fazer com os 90% que têm 10%. Como atualmente não há sinais de melhora, a decisão é o extermínio até que esta maioria se insurja e o mundo mergulhe na barbárie da mesma forma que aconteceu há mil anos com o Império Romano, porém sem mais espaço habitável no planeta.

Não é à toa que essa possível guerra tenha eclodido com o assassinato por controle remoto do líder militar de um país protagonizado por outro país e países como Alemanha e Inglaterra tenham assumido uma posição quase indiferente, assim como o comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro e seu governador tenham considerado a morte de uma criança negra e pobre em um conflito armado urbano "ossos do ofício".

O mundo já vive uma Guerra Mundial, e ela é contra os pobres. O que os EUA farão é apenas rapinar as últimas reservas de petróleo do mundo.

Em que medida esse compartilhamento em massa de informações, nas redes sociais, afeta a vida das pessoas?

No século 19 grandes massas migraram das zonas rurais para os grandes centros urbanos para trabalhar nas fábricas, dando início à segunda revolução industrial. Nos dias com a chamada quarta revolução tecnológica, que iniciou com a internet e hoje vive a era da chamada "governamentalidade algorítmica", é natural que os fluxos humanos fluam para onde o capital está.

São apenas cinco grandes empresas – conhecidas como as Big Five – que se tornaram intermediárias poderosas de nossa vida digital: Apple, Google, Microsoft, Facebook e Amazon. Em 2017, essas empresas passaram a ocupar as cinco primeiras posições no ranking das companhias mais valiosas do mundo, deixando para trás gigantescas corporações globais que durante décadas tinham posições de liderança como Exxon, Nestlé, Samsung, General Electric e Johnson & Johnson. Juntas, as cinco companhias valem ao redor de 3,3 trilhões de dólares (aproximadamente metade do PIB brasileiro de 2018). O atual ministro da Economia brasileiro Paulo Guedes, pretende economizar, com a reforma da Previdência, R$ 1 trilhão em dez anos.

Pesquisadoras e pesquisadoras do mundo inteiro já estão estudando este fenômeno, e o chamam de "Capitalismo de Vigilância". Somos sujeitos da linguagem e do simbólico. É isso que nos torna humanos. A realidade que vivemos é uma realidade virtual, quando temos uma dor de estômago nunca sentimos apenas a dor, já imaginamos a palavra "dor" e todas as suas significações. Nossa relação com o mundo nunca foi direta. As tecnologias apenas amplificam isso e, aliadas aos mecanismos de sedução e captura da economia e da política, hoje o mundo humano que tem acesso a essas tecnologias está vivendo uma espécie de realidade paralela.

O grande risco disso é justamente quando as regras do mundo virtual começam a coordenar e invadir a nossa vida subjetiva. As pessoas não mais compartilham de espaços de conversa e convivência, candidatos a cargos políticos se elegem pura e simplesmente por serem youtubers ou celebridades do Twitter, informações falsas espalhadas pela rede são interpretadas como verdade (terra plana, movimentos antivacina etc.).

Assim como Hittler conclamou a Alemanha a se unir contra o grande inimigo comum, os judeus, usando propaganda escrita e cinema, hoje os EUA usam o terrorismo e a "autodefesa" e muitas fake news em WhatsApp, Facebook e Twitter para conquistar o apoio de bilhões de pessoas a defender um território que está a milhas de distância. Com o advento dos drones nem é mais um movimento pacifista solidário as famílias dos soldados mortos: estes serão em número irrisório.

Qual o impacto do celular, que faz com que fiquemos conectados o dia todo, estando sempre ao alcance?

Atualmente, o mundo comporta 4 bilhões de pessoas usando algum serviço conectado à internet, e até 2021 seremos 5 bilhões. O escândalo da Cambridge Analytica - empresa privada que combinava mineração e análise de dados com comunicação estratégica para processos eleitorais – revelou o uso de dados de redes sociais sem autorização. Percebemos que os dados não identificados dessas redes, mais as imagens de câmeras de vigilância, GPS, buscas em plataformas como Google, Amazon, Instagram, lojas virtuais, alimentam gigantescos bancos de dados e são transformados em capital e gerenciados por inteligência artificial.

O Brasil é o segundo país do planeta em tempo de conexão, em uma média de nove horas por dia por habitante, sendo que 133 milhões de brasileiros seguem perfis políticos nas redes sociais.

A palavra rede também guarda em si uma multiplicidade de sentidos e de inserção na esfera filosófica, tecnológica e política. Podemos pensar as redes como espaço de conexões entre pessoas, como espaços de acolhimento e como aparelhos de captura.

A única maneira de evitarmos o colapso mundial não é combatendo a tecnologia ou as grandes corporações. Estas já venceram. O que podemos fazer é voltar a cultivar espaços de encontro, de solidariedade, fomentar outros modos de produção, de comunicação e de encontro entre as pessoas.

* supervisão de Fernando Faro - Editor de Entrevista