Imagem ilustrativa da imagem Melhor trabalho contra violência sexual infantil é o da prevenção
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O 4º artigo do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) determina que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” às crianças e adolescentes.

Em Londrina, nos últimos dias, um padrasto confessou o estupro e o assassinato da enteada. Ele ainda teria tentado comprar o silêncio dela. A escola em que ela estudava chegou a relatar mudanças no comportamento da menina e acionou a Rede de Proteção. O enfrentamento e a prevenção à violência sexual na infância, no entanto, é de responsabilidade de todos, conforme atesta o ECA.

O Brasil ocupa a 13ª posição no levantamento “Índice Fora das Sombras”, criado pela revista “The Economist”, com apoio da World Childhood Foundation e Oak Foundation. O índice faz referência a denúncias e acolhimento de crianças e adolescentes abusados e explorados sexualmente em 60 países. As melhores posições do ranking são ocupadas por Reino Unido, Suécia, Austrália e Canadá.

Para fazer esse enfrentamento à violência sexual infantil, o gerente de Advocacy da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, explica que há a necessidade de preparar profissionais da Rede de Proteção. Também é importante distinguir os crimes entre abuso sexual – violência sexual que se aproveita de proximidade e faixa etária da vítima – e exploração sexual – que envolve redes de prostituição, tráfico de pessoas, turismo sexual e pornografia.

O primordial, contudo, é a atenção da família e da escola. “A gente precisa pautar isso porque de fato não vejo solução se a gente não caminhar no sentido da prevenção”, destaca.

Falar sobre abuso sexual na infância ainda parece ser tabu no Brasil. Um problema é a falta de dados recentes. O senhor acredita que esse problema está relacionado à dificuldade de registrar essas denúncias?

É mais do que isso. É um tema que não foi trabalhado nas universidades, por exemplo, nas carreiras que fazem de fato o atendimento a crianças e adolescentes. São apenas algumas faculdades que tratam dessa situação. Quando você olha para a Rede de Proteção como um todo, profissionais que vão atender no caso de uma denúncia muitas vezes não estão preparados para identificar essa situação de violência.

Mais grave é que muitas vezes a própria tipificação da violência não corresponde ao ato de violência que as crianças sofreram. Na Rede de Proteção, a gente não tem distinções. De acordo com o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), em um apanhado de 2011 a 2017, aparece a porcentagem de “violência sexual”. Mas a violência sexual tem dois grandes eixos: o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e adolescentes.

O abuso sexual pode ser intrafamiliar ou extrafamiliar e a exploração sexual pode ser também através de uma rede ou fruto da relação pontual em um consumo específico. Quando a gente olha os dados, chama muito a atenção esse boletim que foi publicado no segundo semestre de 2018. Quando se faz o recorte do sexo feminino, encontra-se que 51% dos casos que foram atendidos na saúde estão na faixa etária de 1 a 5 anos.

Esses casos que foram notificados, e que foram atendidos na saúde nessa faixa etária, correspondem à informação do abuso sexual. Os outros 42% têm entre 6 e 9 anos. A surpresa é que quando você compara os dados com os do Disque Denúncia, o recorte da violência tem uma incidência maior na faixa etária entre 7 e 14 anos. Portanto, já cobrindo os adolescentes, e com essa dificuldade na tipificação, ou seja, na classificação do tipo de violência.

Então se confunde, não sei se essa violência foi um abuso sexual ou se foi exploração. É importante saber isso até para a gente poder pautar com o governo, formular programas, políticas públicas do Estado para dar conta de fazer um bom atendimento para as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Mais ainda: o atendimento para a violência, quando é um abuso sexual é um, e quando for para exploração sexual são outros. Embora tenha pontos em comum entre eles, os encaminhamentos são diferentes. Isso que cria dificuldade.

Cabe muito ao profissional que atende. Então, se for do Conselho Tutelar, ele pode não fazer essa distinção. Mesma coisa em uma delegacia de polícia ou em um Creas (Centro de Referência Especializado em Assistência Social). Por isso é importante o investimento em formação e qualificação desses profissionais, para que a gente tenha projetos que deem conta dessa situação, para se ter a informação correta.

Como está o Brasil no combate ao abuso sexual infantil comparado a outros países?

O que percebemos no Brasil é que temos um bom quadro de leis, como o próprio ECA. Com relação aos programas de intervenção, no quesito da prevenção, quando a violência já aconteceu, ainda estamos engatinhando. Não temos um programa de prevenção à violência como política de Estado.

Temos o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência, planos estaduais, planos municipais, mas que acabam sendo reduzidos a um conjunto de ações com uma ênfase muito grande em campanhas. A gente tem poucos programas implementados no sentido de trabalhar a intervenção.

Se há uma subnotificação da estatística, fazemos uma média do Disque Denúncia de que a cada 15 minutos uma criança ou adolescente é vítima de abuso sexual. Isso quer dizer que temos um desafio no sentido de implementar de fato programas e projetos locais de enfrentamento à violência.

Existem algumas iniciativas na educação, no próprio ensino fundamental, alguns programas do próprio Judiciário em que alguns Tribunais de Justiça fazem um trabalho de sensibilização, junto da coordenadoria da infância e da educação. Algumas empresas, até por questão do negócio, principalmente no campo da exploração sexual, acabam fazendo um trabalho com seus profissionais, trabalhado a temática da violência sexual dentro da empresa.

Questões culturais podem estar associadas ao abuso sexual, como a cultura machista?

Sem dúvida, esse é um desafio. Precisamos enquanto sociedade reinventar a nossa masculinidade. Não só por conta da violência sexual, mas até da violência física, especialmente contra a mulher. Ainda há números assustadores no País. Então, é um componente dessa violência.

E tem outras situações como o ciclo da violência. Um adulto que comete violência contra a criança e acha que é adequado, é muito comum a gente ouvir algumas expressões como “é de pequenino que se torce o pepino”. Ou seja, se apanhei, é assim que vou educar meu filho. E hoje a gente tem uma vasta literatura provando que isso não é benéfico para ninguém.

A violência sexual que esse adulto aprendeu, muitas vezes, é a forma que ele tem expressar afeto, carinho. As campanhas ou jogam a responsabilidade para a criança ou para a mulher, que não cuidou dessa criança. É muito raro ver uma campanha ou um trabalho de prevenção que informe, que questione essa condição de um adulto do sexo masculino tendo relação com uma adolescente. Muitas vezes ele é premiado, tido como “o cara”. A gente precisa como sociedade desconstruir de fato essa relação.

Outra questão que nos leva a refletir bastante é a pornografia. Hoje se acessa com muita facilidade. E o pior: muitas vezes nossas crianças e adolescentes estão acessando esse conteúdo cada vez mais cedo e levando a um entendimento inadequado, porque essas imagens produzidas na maioria das vezes coloca a mulher em uma situação de objeto. E isso entra como “é assim mesmo que deve tratar seu parceiro, sua parceira”.

Mas isso relacionado à pornografia infantil?

Tem esse tema específico, mas estou fazendo referência a essa pornografia que a criança está acessando.

Quem são as principais vítimas e agressores?

No relatório do Sinan, dos quase 200 mil casos de violência sexual, 76% são de crianças e adolescentes. A violência sexual tem uma marca na infância. Se eu fizer o recorte, também vou chegar que 70% são meninas. E desse percentual tem uma hipótese de que o número de meninos abusados, por conta da questão cultural, seja mais difícil a revelação. Ficam com vergonha de serem questionados em relação a sua orientação sexual. Mas, sem dúvida, a gente pode dizer sem medo de errar que ainda as crianças e adolescentes são os mais atingidos por esse tipo de violência.

Se a criança sofre um abuso, é possível que ela se torne um abusador?

Não temos esse número. O que a literatura traz é que, se ela aprendeu a se relacionar dessa forma, é muito provável que reproduza isso. O que é interessante é que praticamente 100% das pessoas que estão cumprindo pena relatam que passaram por violência, que foram abusadas. A maioria dos abusadores que cometem violência sexual contra crianças e adolescentes é homem. E esse número não bate, porque, se são homens, então essa estatística de meninos abusados deveria ser muito maior do que hoje se apresenta, em torno de 28%. Claro que dá para afirmar que os homens têm essa relação assimétrica, essa relação de poder, e muitas vezes de provedor daquele ambiente onde essa família está convivendo, além da força física. Por isso essa dificuldade de vir à tona esses casos.

É importante atender também o abusador?

A pessoa vai cumprir a pena e vai voltar para a sociedade. Se não entender que o ato que cometeu vai comprometer o desenvolvimento da criança, a tendência é de que volte a acontecer. Não só por isso, mas também para dar uma resposta para essa pessoa. Muitos cometeram a violência porque “estava fácil”, porque surgiu uma oportunidade. Por isso é importante fazer o trabalho de prevenção. Na literatura também aparece isso, quando a criança ou adolescente vítima de violência sexual diz “não”, provavelmente não vai ser abusado. Mas até essa criança saber dizer não, ela tem que saber que o corpo dela é privado, que ninguém pode tocar sem consentimento dela. Isso é bastante estratégico para se trabalhar com crianças e adolescentes.

Abuso tem a ver com classe social?

Não. O abuso é extremamente democrático, está em todos os segmentos, ricos, pobres. O trabalho continua para o abusador entender de fato o que foi feito e a consequência disso naquela família. Isso é importante. Além disso, tem a questão da responsabilização do agressor. Para a criança é uma resposta bastante importante, saber que valeu a pena ela falar. Primeiro porque ela vai sair desse sofrimento. Em segundo lugar porque ela vai ser acolhida pelos órgãos responsáveis. E em terceiro porque a pessoa será responsabilizada.

Pode ser que não seja apenas uma criança sofrendo com aquela violência. Muitas vezes tem outras crianças que sofrem, pelo mesmo autor. Então, com a responsabilização, também cessa a violência contra outras crianças daquela comunidade. É importante a resposta para a criança, para que ela saiba que a denúncia valeu a pena.

Há casos em que a própria família tenta acobertar ou defender o abusador, que pode até ser o provedor da casa?

Também. Muitas vezes o que é comum vermos em campanhas são pessoas que cometem a violência com cara de mau, barbado, despenteado. E não é assim. Pelo contrário, é uma pessoa acima de qualquer suspeita. Geralmente são pessoas muito queridas na comunidade, muito queridas na família. E o que é mais impressionante, quando a criança faz a denúncia, muitas vezes adultos que recebem essa denúncia duvidam. Lembro de depoimentos de meninas falando que o que mais doeu foi o fato de não terem acreditado, de terem duvidado da palavra delas. E a gente imagina o seguinte, se ela está fazendo essa revelação, alguma coisa está acontecendo. Mesmo que essa violência não esteja acontecendo de fato, tem alguma coisa que não está legal nessa relação.

Isso passa por ouvir o que as crianças têm a dizer, não só o relato, mas também desenhos, palavras diferentes?

Sim. Porque ela pode se expressar de outras formas, por meio de desenhos, de música, de poesia. Ela pode fazer essas manifestações. Por isso uma mudança de hábito de uma criança, que é extremamente extrovertida e de repente fica calada, fica ausente, pode ser [um indicativo], uma forma de fuga também, de tentar enfrentar essa dor.

É importante ter esse canal de comunicação, principalmente os pais, que devem colocar um diálogo aberto, mostrar que existe um espaço para falar desse assunto. A família deveria falar com a criança desde pequena. Pode começar nomeando as partes do corpo, depois falar o que é público e o que é privado no corpo, falar de situações de risco. E com adolescente falar inclusive das doenças sexualmente transmissíveis.

As pessoas confundem isso com ensinar as crianças a ter o ato sexual. Não é disso que a gente está falando. É um trabalho de educação sexual e de prevenção à violência. Aliás, as crianças que tiveram, e isso também está na literatura internacional, educação sexual, iniciam a vida sexual muito depois do que aquelas que não passaram.

Se a maior parte dos casos ocorre nas famílias, é na escola que a criança se sente amparada para falar?

Sem dúvida. A escola tem um papel importantíssimo na prevenção. É papel da escola ter na sua grade isso, até porque o próprio decreto de regulamentação da escuta protegida fala desse papel de prevenção da violência, que tem que ser trabalhada na escola. E para se ter um espaço e abertura é importante a qualificação dos profissionais na temática de violência sexual. É uma escuta qualificada, e a escola, assim como a saúde, tem um papel de que, se suspeitar de algo, precisa fazer a denúncia. Seja para um conselho tutelar, seja para a delegacia de polícia. Não é facultativo, é obrigatório.

Quem pode ajudar nesse enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes?

Cada um. Na sua casa, com os filhos, com sobrinhos, netos. Mesmo que a gente tenha maiores serviços e formação de profissionais, a gente não daria conta de atender todos os casos. O melhor trabalho a ser feito é o da prevenção, para que a gente consiga diminuir esses números. Não consigo dizer nenhum Estado que tenha de fato na sua política esse trabalho de prevenção. O que a gente tem são bons trabalhos para acolher a criança quando ela sofre a violência. Isso a gente começou a construir no Brasil, mas tem países como Estados Unidos, Canadá, Suécia e Inglaterra que são exemplos nesse acolhimento de crianças vítimas de violência. A ênfase é no trabalho da prevenção e isso é trabalho de todos. É papel da família e da escola.