O humor que debocha das pessoas oprimidas não tem graça. Esse era o conceito que o cartunista Henfil, morto em 1988, tinha a respeito do próprio trabalho. A ideia é compartilhada pelo filho, o produtor cultural e cronista carioca Ivan Cosenza de Souza, 49. “Não gosto quando o humorista espezinha as pessoas que já sofrem”, afirmou ele em Londrina, onde esteve nos dias 23 e 24 de setembro para o relançamento de “Como se faz humor político”. O livro é baseado em uma entrevista que o pai concedeu ao jornalista Tárik de Souza, em 1984.

Imagem ilustrativa da imagem Humor que debocha dos oprimidos não tem graça
| Foto: Nelson Bortolin

Cosenza é o guardião da obra do cartunista há 27 anos. E preside o Instituto Henfil, que ainda não tem uma sede. Todos os originais daquele que é considerado por muita gente o maior cartunista do País estão na casa do filho, no Rio de Janeiro.

“Quando meu pai morreu, eu não entendia como funcionava direito autoral. Tinha acabado de completar 18 anos", conta Ivan, que só recebeu o acervo quatro anos depois. O jovem teve de mover um processo judicial contra a mulher com quem Henfil viveu seus últimos anos. “Ela tentou esconder a obra do meu pai.”

O cartunista e jornalista Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil, foi um militante político de esquerda, que apoiou o movimento sindical, lutou contra a ditadura e criou o bordão “Diretas Já”, que reivindicava eleições diretas em 1983 e 1984.

Ele morreu de aids dia 4 de janeiro de 1988, aos 44 anos. Hemofílico, havia contraído o vírus HIV durante uma transfusão de sangue, assim como os irmãos Herbert de Souza (o sociólogo Betinho) e o músico Chico Mário. Nenhum deles resistiu à doença que, na época, não tinha tratamento eficaz. Integrou o jornal "Pasquim", veículo de resistência ao regime militar. Entre seus principais personagens, estão Graúna e Fradim.

Foi na família da mãe, no entanto, que Cosenza, ainda criança, conheceu as mazelas do regime militar. Três de seus tios, militantes políticos no Ceará, foram presos. “Era um programa de final de semana (visitar o tio na cadeia)”, disse Cosenza, durante palestra no Sesc Cadeião, em Londrina.

O produtor cultural lamenta que, com a ascensão política do presidente Jair Bolsonaro (PSL), muitos brasileiros passaram a defender a ditadura.

Quando o senhor resolveu que iria tomar conta da obra do seu pai?

Quando meu pai morreu, eu não entendia como funcionava direito autoral. Tinha acabado de completar 18 anos. Quando eu recebi os originais, um dos amigos do meu pai, chamado Jeferson de Andrade, veio me procurar para lançar a coleção de livro do meu pai com os Fradinhos, a Graúna (personagens do Henfil). Aí eu fui vendo a importância do acervo. Eu conhecia uma parte artística da obra dele, mas não conhecia a parte política. Foi quando eu fui aprender, ver a admiração e o carinho que as pessoas tinham por ele. E isso começou a ser transferido para mim. A obra veio para mim e eu tive de fazer alguma coisa.

O acervo caiu no seu colo?

Eu não tive que buscar coisas espalhadas. Ele guardava todos os originais. Infelizmente, houve uma briga jurídica porque ele morava com uma mulher já havia algum tempo. Ela não tinha direito, mas tentou esconder todo o acervo. Entre a morte dele e eu receber esse acervo foram quatro anos. Ele morreu em 1988 e eu só pude editar livros dele quatro anos depois.

Está tudo no instituto?

Está tudo na minha casa. O instituto existe no papel, mas não tem uma sede. Até o momento, não consegui uma sede. Estava conversando com o Ministério da Cultura. Sempre tive muita dificuldade de fazer isso, até por falta de conhecimento. Estava para sair algo quando houve o golpe (impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff).

O Ministério da Cultura foi acabando (no governo de Michel Temer). E, agora, com esse governo, infelizmente, acabou de vez. É complicado trabalhar com cultura em um governo que a gente viu o representante dizer que não tem de conversar com artistas (refere-se ao dramaturgo Roberto Alvim, nomeado para dirigir o Centro de Artes Cênicas da Funarte). Espero que seja uma fase passageira, que em breve a gente retorne ao regime democrático de fato e com pessoas que se importem com o País.

O projeto que eu estava tratando no Ministério da Cultura era para a criação de um espaço onde a obra do meu pai fosse tratada de maneira correta e que pudesse ficar abertura à visitação pública.

Durante a palestra, o senhor disse que três tios por parte de mãe foram presos durante o regime militar. E que chegou a visitá-los na cadeia. Como foi isso?

Uma tia eu não cheguei a ver presa porque foi um pouco antes de eu nascer. Depois, eu cheguei a visitá-la em Fortaleza. Estava na clandestinidade, tinha de chamá-la pelo nome falso. Uma outra, eu visitei na cadeia. E, principalmente, um tio, com quem eu tinha mais contato. Era um programa de final de semana visitá-lo (no presídio de Bangu) no Rio. Eu tinha entre 5 e 10 anos.

Como se sente hoje, quando vê pessoas defendendo a ditadura?

Tem muita falta de conhecimento. Tenho paciência para conversar com as pessoas que desconhecem os fatos. Que tiveram informações erradas. Mas tem pessoas que são informadas e defendem por pura falta de caráter. Quando a pessoa passa a defender o discurso do presidente (Jair Bolsonaro) de que tem de torturar, tem de prender, tem de matar, expulsar do País, aí é falha de caráter.

Essa confusão toda ajudou a gente a descobrir pessoas sem caráter que estavam ao lado da gente e de quem a gente precisa se afastar. Não é o tipo de pessoa que eu quero perto de mim e da minha filha.

Em algum momento, antes das eleições do ano passado, o senhor pensou que parte da população passaria a defender a ditadura abertamente?

Foi uma surpresa para a gente. Tinha tanta gente com medo dos gays saírem do armário. E, na verdade, o que está acontecendo é que os fascistas estão saindo do armário. Antes, eles tinham vergonha. Faziam algum comentário pequeno. A gente achava que não estavam falando sério. Ficava com esperança de que não estavam falando sério.

Mas, de um tempo para cá, as pessoas passaram a não ter vergonha de falarem de suas ideias e preconceitos fascistas e homofóbicos. A ponto de um jornalista dizer que aquela menina (ativista sueca Greta Thunber, de 16 anos) é histérica e precisa de sexo (ele se refere ao apresentador Gustavo Negreiros, da rádio 96 FM de Natal – RN, que foi demitido após as declarações).

Depois ele pediu desculpa, mas é o tipo de desculpa que a pessoa pede, mas que jamais vai desfazer a imagem que ela passou do que realmente é. É machista, preconceituosa e só pediu desculpas para limpar a imagem dela. Mas continua pensando aquilo. Não foi um comentário feito por alguém que estava desinformado. Foi por preconceito mesmo.

Esse caminho que o Brasil tomou pelo menos serviu para a gente ver que o País não é assim tão receptivo, sem preconceito, como se pensava. A gente que trabalha com política sabia disso. Meu pai já denunciava esse cinismo do não racismo do brasileiro, com frases que a gente conhece como: ‘Ele é preto, mas tem a alma branca’ ou ‘Tenho até um amigo preto’.

Então, pelo menos, essa imagem que o Brasil tinha foi quebrada. A verdadeira cara do País foi exposta. A gente precisa trabalhar para melhorar.

O senhor tem receio de que o Brasil possa partir para uma ditadura de fato, com Congresso fechado, suspensão das eleições?

Desse governo, a gente não deve duvidar de nada. São pessoas capazes de qualquer coisa. São ligadas diretamente com assassinatos de pessoas como, por exemplo, a Marielle (Franco, vereadora carioca morta no ano passado). Sabe-se lá de mais quem. São pessoas que idolatram torturadores. Idolatram um Ustra (coronel Brilhante Ustra, tido como maior torturador do período militar), que, além de torturador, foi estuprador. Ao mesmo tempo, falam que tem de fazer castração química de estupradores. São pessoas capazes de qualquer coisa. Tem de ver até que ponto eles têm apoio (para romper com a institucionalidade). Tem de ficar de olho.

Pouco antes de seu pai morrer, o senhor foi morar em Fortaleza. Por quê?

Fui morar com minha tia que foi presa e que minha mãe cuidou da filha dela. Depois de solta, ela teve de ficar afastada, meio escondida, porque, senão, ia ser presa de novo. Eu fui morar um tempo com ela. Tinha 15 anos e voltei (para o Rio de Janeiro) com 17 anos, pouco antes de completar 18. Eu voltei no final de novembro e ele morreu no início de janeiro.

Vocês estavam ligados naquela época?

Eu ia pelo menos duas vezes por ano para vê-lo. Quando ele ficou doente, fui algumas vezes visitá-lo no hospital. Mas já era uma época que não dava nem para conversar mais. Ele já estava debilitado, de cama. Teve infecções no maxilar, não conseguia falar muito. Não tinha muito que interagir. O último ano de vida foi muito complicado.

Na palestra, o senhor falou muito sobre responsabilidade do humorista. Existe limite para o humor? Esse limite é claro para você?

Acho que foi o Gregório (humorista Gregório Duvivier) que falou isso: o limite do humor deve ser a lei. Quando você usa o humor e ultrapassa uma lei, você ultrapassou o limite.

Cada um faz seu tipo de humor. Tem gente que acha engraçado e tem gente que não vai achar. O humor do meu pai, o humor que eu gosto, é o que não ridiculariza pessoas que estão sofrendo. Humor que debocha do sofrimento, da necessidade das pessoas, eu não gosto. Não gosto quando o humorista espezinha as pessoas que já sofrem.

Mas o limite tem de ser a lei. Se você começa moralmente a censurar o humor, mais para frente você vai sofrer essa censura também. O limite é a lei que deve ser a mesma para quem eu gosto e para os meus inimigos. Temos de lutar pelo direito de todos (fazerem humor). Senão, você está sendo como os ditadores.

O senhor vê artistas diretamente influenciados por seu pai?

Infelizmente, o cartum está meio limitado. Você não vê muitos jovens fazendo cartum. Ainda os cartunistas mais conhecidos são da geração do meu pai e de uma geração depois da dele, como Laerte, Angeli, Glauco.

Tem o Aroeira, que é fantástico, tem o Latufe, mas não são jovens de 20 e poucos anos como se via antes. Acho que não tem havido muito espaço. Mas o que ouço das pessoas que fazem cartum é que são inspiradas pelo trabalho do meu pai.

Está escrevendo crônicas?

Vai completar dois anos que eu passei a fazer crônicas. São as "Cartas do pai’" como meu pai fazia as crônicas em forma de carta para minha avó, que eram as "Cartas da mãe".