A força do movimento pela humanização do parto no Brasil transita por duas esferas. No âmbito administrativo, ele depende de políticas públicas funcionando na prática e no espaço público, isto é, entre a sociedade, é preciso quebrar paradigmas.

Imagem ilustrativa da imagem Humanização do parto no Brasil: "o protagonismo está invertido"
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É sobre isso que a FOLHA conversou com o ginecologista e obstetra Braulio Zorzella, que se tornou uma referência no Brasil sobre o assunto com uma taxa de mais de 90% de partos normais humanizados em pouco mais 15 anos de exercício da profissão. Ele é formado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e integra a ReHuNa (Rede pela Humanização do Parto e Nascimento).

Zorzella esteve recentemente em Londrina falando para um público diversificado - médicos, enfermeiras obstétricas, mães e doulas - com a palestra “O parto do século XXI: o que há de novo?”. O evento foi uma promoção do Hospital São Francisco Instituto Vida, de Cambé, e UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Zorzella diz que o protagonismo nos partos está invertido, ou seja, os médicos estão "comandando" uma situação que deveria ser decidida e planejada pela mulher por direito. Dessa forma, a prática de cesárea vem acontecendo muito mais que o necessário.

Com uma taxa de 55%, o Brasil ocupa a segunda posição no ranking de países em realização de cesáreas. O levantamento é da OMS (Organização Mundial de Saúde), que preconiza o índice de 10% a 15%, considerando o controle e redução da morbidade materna e neonatal.

Nesse contexto surgem inúmeras situações que configuram a chamada “violência obstétrica”, termo que o MS (Ministério da Saúde), em maio deste ano, pediu que fosse evitado e até abolido de documentos de políticas públicas do governo. Por recomendação do MPF (Ministério Público Federal), meses depois, a pasta reconheceu o direito legítimo de mulheres utilizarem o termo para retratar qualquer desrespeito, seja no pré-natal, parto, pós-parto ou abortamento. Essa violência pode ser verbal, física, psicológica e até sexual.

De acordo com a ONG Artemis, que atua para a promoção da autonomia feminina e erradicação de todas as formas de violência, uma em cada quatro mulheres brasileiras é vítima de violência no momento do parto ou pré-natal. A afirmação considera os dados da Fundação Perseu Abramo e abrange desde atos de desrespeito, assédio moral, violência física ou psicológica até negligência. Ainda de acordo com a ONG, um tipo de violência obstétrica muito comum na América Latina é a episiotomia (incisão efetuada para ampliar o canal de parto) indiscriminada.

Evidências científicas apontam que a episiotomia é praticada em mais de 90% dos partos hospitalares da América Latina, mesmo que sua indicação seja de 10% a 15% dos casos pela OMS. Em junho de 2011, o MS instituiu a Rede Cegonha com a intenção de mudar o modelo de atendimento buscando abolir as práticas de violência obstétrica.

Zorzella diz que não realiza episiotomia desde 2010. “A gente sabe que praticamente não existe mais indicação. Muitas vezes, ela é feita para acelerar o final do parto e não porque a mulher precisa”, afirma.

Em conversa com a FOLHA, o médico resumiu que a violência obstétrica é tudo aquilo que não é humanizado, ou seja, tudo o que fere a tríade: protagonismo da mulher, evidências científicas e equipe transdisciplinar. “É um tabu no nosso País porque os médicos acham que estamos falando deles, justamente porque o protagonismo está invertido”.

O que é parto humanizado?

Ao contrário do que muitos pensam, não é o ambiente que diz que o parto é humanizado. É uma tríade que envolve o protagonismo da mulher nas decisões, somado às evidências científicas atuais, ou seja, melhor segurança possível no parto, e uma equipe transdisciplinar 24 horas por dia (uma equipe horizontal, onde se tem intersecção entre os profissionais). De grosso modo, o parto humanizado é o protagonismo feminino aliado à segurança e uma equipe que lhe apoia, seja no plano A (parto natural), plano B (parto normal com intervenção) ou plano C (césarea por necessidade real).

O que significa protagonismo da mulher nesse contexto?

É a formação do plano de parto no pré-natal, no momento em que ela está consciente e totalmente autônoma de suas decisões em relação ao que ela gostaria que fosse o parto, ou seja, o plano A dela. Isso inclui também quais as intervenções que ela permite que sejam feitas se acontecer X, Y, Z, inclusive a cesárea se for identificada essa necessidade naquele momento. Porque no momento do parto, se ela pedir cesárea, cabe ao médico que fez o plano de parto com ela ou quem pegar esse plano na hora, saber o que ela pensou no momento racional. Por exemplo, se ela pede uma cesárea por conta da dor, o médico pode oferecer uma anestesia para melhorar as condições dela, ou seja, ser respeitada a decisão que ela tomou no pré-natal. Não é que no momento do parto ela não pode mudar essa decisão. Ela pode mudar quando ela quiser, só que a gente sabe que quando a mulher está mais vulnerável no trabalho de parto, ela tende a ter uma decisão que não necessariamente é o que ela vai apoiar depois.

Todos sabem que a dor (ou o medo dela) é um dos fatores que levam muitas mulheres a optarem pela cesárea como plano A. Como lidar com isso?

São três letras ‘D’ que levam a mulher a uma "descesárea": dor, desconfiança e desinformação. Algumas falam que é dor, mas muitas já entendem que a cesárea dói mais que o normal porque ela persiste até 20 dias depois do parto, além de outras questões como a dificuldade para amamentar. Já a desconfiança é no sentido de conseguir levar o plano adiante ou sobre o medo do bebê "passar da hora" em um parto natural, e a desinformação é no sentido de achar que a cesárea é mais segura. Existe um ciclo que se retroalimenta que é dor, medo e tensão. A tensão dá mais medo, que dá mais dor, que gera mais tensão e por aí vai.

Existe, muitas vezes, uma expectativa gerada pelas mulheres para que tudo evolua para o parto natural, mas isso pode não acontecer e surge a culpa, uma frustração. O que o senhor pode dizer sobre isso tendo tantas experiências em obstetrícia?

Tem uma frase que diz “mulheres sabem parir e bebês sabem nascer”. Eu não concordo com ela e vejo que quando as pessoas se apoiam nela, banaliza-se situações reais. Por exemplo, parto em casa com duas cesáreas anteriores, a mulher hipertensa e com diabetes. Não dá. Está fora da segurança. Aumenta o risco e o bebê morre. Esse foi um caso real.

O que eu acho interessante é a mulher ter em mente quais são as reais possibilidades dela e para isso é preciso contar com todas as informações médicas, de forma transparente. Se ela tiver um atendimento 100% humanizado, com boas técnicas, ela vai ter 90% de chance de parto normal e 10% de cesárea. E é importante ela lidar com esses 10%. E se tiver um plano B ou C, tem que valer para ela assim como uma pessoa que planejou uma viagem. A mulher tem que estar aberta a mais de uma estrada para chegar ao objetivo de ter um parto com segurança e um bebê saudável.

O parto humanizado dispensa a presença do médico obstetra?

Cerca de 70% dos partos não precisam da presença do médico obstetra, mas este profissional tem que estar presente no sentido da retaguarda. Por exemplo, se for um parto em casa tem que ter um hospital de retaguarda e o médico.

Não são todos os médicos que incentivam o parto normal e isso leva muitas mulheres a buscarem profissionais que possam ajudá-las nesse processo. Qual é a sua opinião sobre as doulas e enfermeiras obstétricas?

Em São Paulo são 40 médicos que realmente incentivam o parto normal em uma cidade de 20 milhões de habitantes. Desde 2006, a presença de doulas é de 90% nos partos em que atuo. Eu vejo de duas formas: se tem uma equipe bem preparada tecnicamente, com duas enfermeiras (uma para a mãe e outra para o bebê), com uma retaguarda muito boa, está ótimo. Esse é o modelo ideal, inclusive. Mas o que acontece muito, seja por uma questão mercadológica ou pela aceitação de condições não tão seguras para a mulher com o intuito real de ajudar, é uma fuga de protocolos. Sou extremamente a favor de que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) crie uma regulamentação para parto domiciliar e que as equipes (sejam doulas ou enfermeiras obstétricas) tenham que se cadastrar junto ao órgão para poderem atender o parto domiciliar. Não há regulamentação e essa medida seria como um alvará de funcionamento.

Qual é o maior paradigma que tem que ser quebrado sobre o parto humanizado no Brasil?

É fazer todo mundo entender que o centro do universo do parto é a mulher e não é o hospital e nem o médico. Depois, todo o resto vem junto. Mas muitas mulheres não se acham protagonistas ainda. As mulheres têm que tomar as rédeas e devem ter essas rédeas muito bem colocadas para elas porque até mesmo as evidências científicas mostram que quando mulheres que estão se sentindo mais seguras, donas de si mesmo, o parto flui melhor, é mais rápido, com menos problemas e menos necessidade de intervenções. A chave é de protagonismo.