Para a filosofia, o ceticismo argumenta que não é possível afirmar sobre a verdade absoluta de nada, é preciso estar em constante questionamento. É sob esta ótica racional que o professor do Departamento de Teoria e Filosofia do Direito da USP (Universidade de São Paulo) e da FGV (Fundação Getúlio Vargas), José Eduardo Faria, analisa o momento político como o das mais radicais tensões políticas e institucionais vividas pelo Brasil.

Segundo Faria, o discurso radical e maniqueísta do presidente Jair Bolsonaro (PSL) corrói a democracia e impede o desenvolvimento. Ele pontua que os últimos acontecimentos como os vazamentos de conversas da Lava Jato pelo site The Intercept e ataques ao então presidente ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) agravaram ainda mais a crise. Por outro lado, Faria defende maior unidade entre os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), que poderiam ser o fiel da balança. Já na economia, critica a falta de projeto do atual governo para recuperar o emprego e o crescimento.

Também jornalista com mais de 50 anos de experiência, o articulista do jornal o “Estado de S.Paulo” esteve em Londrina no último final de semana para abertura do curso de pós-graduação em Filosofia Política e Jurídica da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Como o senhor avalia as medidas econômicas adotadas até aqui pelo governo Bolsonaro?

O que estamos chamando de liberal no atual governo é o que a filosofia política chama de algo libertário. Os membros da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, defendem que tudo que é intervenção do Estado é ruim por natureza. Eles não são liberais e sim libertários. Ou seja, são aqueles que advogam as reformas mais radicais. Formação liberal tinha membros da equipe do Fernando Henrique Cardoso, como por exemplo o Pedro Malan. Esse libertarismo está em uma série de medidas que ele vem introduzindo como mão de gato nas medidas provisórias.

Pode citar um exemplo?

Para tentar deter a judicialização da PEC (proposta de emenda constitucional) da Previdência ele obrigou todo qualquer processo em cidade onde tenha Vara Federal. Hoje na estrutura da Justiça federal, apenas 4% têm comarcas nos municípios. O Paulo Guedes tentou suprimir a possibilidade de parceria com as justiças estaduais. Na medida provisória da liberdade econômica, ele está tentando limitar o alcance da Justiça do Trabalho para os trabalhadores com mais de 30 salários mínimos. Ou seja, ele quer matar a Justiça do Trabalho na jugular com a ideia de quem ganha mais tem a capacidade de autodefesa. Ele quer matar a unidade do órgão passando a competência para a Justiça Civil.

Como o senhor avalia o discurso do Bolsonaro sobre o emprego?

O discurso de que o Estado é ruim por premissa é maldoso e impede o desenvolvimento. Bolsonaro filtra esse discurso de maneira maniqueísta e binária. Ele diz que se quisermos ter o trabalho, nós temos que abrir mão dos direitos. Senão não damos condições para o empresário investir. Mas não é isso que a gente está vendo. Várias indústrias farmacêuticas estão saindo do Brasil. Por outro lado, há um desemprego conjuntural e você tem sucateamento de algumas profissões e o sistema educacional capaz de requalificar essa mão de obra. Ele acha que suprimir direito vai por tabela criar novos postos. Não há conexão lógica. Para empregar é preciso ter segurança jurídica, desburocratização. O empresário precisa ter crédito, capacidade de importar tecnologia. Nós temos um governo que não tem projeto.

A reforma tributária pode ser uma saída?

São vários projetos à mesa. Uma das propostas apresentada pelo secretário da Receita Federal é uma reedição da CPMF. Eles não querem admitir, mas está em jogo. É um imposto muito complicado que sobrecarrega a cadeia produtiva. Ao mesmo tempo anula o mercado de capitais, desarruma o sistema imobiliário e a construção civil. Precisa saber qual reforma se quer. A reforma tributária será mais difícil que a da Previdência. Embora necessária, ela é um fio desencapado. O governo pode saber como colocá-la na Câmara, mas não o que vai sair de lá porque o lobbies são muito fortes. As bancadas do Norte e Nordeste são maiores e tanto no Senado quanto na Câmara e elas têm poder de veto. Como fará uma reforma sem fazer concessões? Ainda mais quando temos um governo com um presidente com um discurso desequilibrado e inculto do ponto de vista cognitivo. Ou seja, ele não uma visão de país.

Até quando Bolsonaro manterá seu capital político?

A sensação que tenho que ele está falando para convertidos. Ele imagina ter 30% do eleitorado. Se mantiver isso, Bolsonaro acredita que sobrevive até o fim e chega ao segundo turno em 2022. Depois demoniza um candidato mais à esquerda como Fernando Haddad ou Ciro Gomes. Além do mais temos um calendário eleitoral curto, com eleições municipais no meio desse curso, o que impede a discussão e continuidade de políticas públicas.

Como senhor avalia o papel do STF diante desse cenário de tensões?

O Supremo se tornou uma espécia de tábua de salvação de um presidencialismo de coalizão, com um sistema pluripartidário de partidos frágeis e fragmentados em relação ao processo decisório. E neste processo o Executivo e o Legislativo acabam recorrendo ao Supremo para arbitrar. Neste caminho há muitos anos o STF perdeu a ideia de colegialidade. Para lembrar o ex-ministro Sepúlveda Pertence, o Supremo é uma espécie de “Síndrome de 11 ilhas”. Ou seja, cada um faz o que lhe der à cabeça, saem de lá muitas decisões monocráticas e você percebe claramente que pedem vistas para travar o processo decisório. Ou pedindo para acelerar processo para desequilibrar o jogo. Isto é, não têm visão sistêmica. A esse altura os ministros terão que ter conversar senão a situação se deteriora.

O ministro Dias Toffoli, presidente do STF, pode conduzir esse elo?

Não me lembro de ser o ministro mais preparado do ponto de vista do direito. Mas o Toffoli vem da esfera política como ex-assessor jurídico do PT e foi advogado-geral da União de Lula. A leitura que ele ele enxerga o jogo é pela questão política. A sensação que tenho é que ele tem estimulado o diálogo para que haja uma reação minimamente uniforme do Supremo, que ao meu ver neste momento garante a sobrevivência da instituição. É preciso abrir mão da “Síndrome das 11 ilhas”.

Como o senhor avalia a ideia da indicação de um ministro “terrivelmente” evangélico?

Eu não sei o que quer dizer isso. O perfil intelectual desses nomes é muito fraco. No direito laico, em um tribunal laico, um ministro só poderia atuar como evangélico ou cristão em matérias de direito de família ou para discutir aborto, por exemplo. A massa de conflitos que são levados ao STF são, em geral, de direito público e direito processual. O Supremo não tem tradição em discutir questões de família.

Qual é o impacto político e jurídico dos vazamentos da Lava Jato?

A impressão que tenho é que certo momento a força-tarefa andou muito bem. Esses juízes e promotores têm uma formação anglo-saxônica. Eles tinham consciência de direito penal e econômico e seguiram a minuta da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) sobre a lavagem de dinheiro. Eles se apropriaram de material importante, de uma maneira de produzir provas que deram resultado. Por outro lado você tem aquela velha guarda de criminalistas com a visão garantista para prever a nulidade com a prescrição do crime. Mas eles fracassaram nas delações premiadas, no mensalão e no caso Lula.

Quando as coisas desandam?

As coisas desandam quando o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol começam a trocar informações no sentido político para acelerar as coisas. E a gente percebeu que influiu no cenário eleitoral. Não estou falando da opinião pública, estou falando no sentido moral e ético. A imagem não se sustenta. Eles não têm mais autoridade para impor suas pautas. No caso do Moro, ao trocar a magistratura pelo Ministério da Justiça, ele cometeu erro ao precipitar críticas da classe política aos juízes. Agora ele abre brecha para a crítica e para o ressurgimento da ideia desse grupo do baixo clero político de tentar aprovar o projeto de abuso de autoridade. Isso é um perigo porque intervém diretamente na liberdade de interpretação do juiz. Ele enfraqueceu a magistratura e se torna uma figura menor no governo federal.

Qual o futuro do Moro?

Bolsonaro o quer no governo, mas como uma figura menor. Evidentemente ele pode incomodar se sair candidato. Mas evidentemente Bolsonaro não quer que ele saia do governo porque não o quer como rival, mas irá mantê-lo. A visão técnica do Moro e do Deltan foi boa, mas a leitura política e a visão de mundo foi equivocada.

Mas é o fim da Lava Jato?

A impressão que tenho conversando com alguns ex-alunos é que a Lava Jato de Curitiba já está andando e os processos já se esvaziaram naturalmente e já foram apurados. O que vai se destacar é o trabalho de outros núcleos. Vamos saber se esses procuradores irão aprender com erros cometidos até aqui.

Diante de todo esse cenário caótico, há expectativa de contrapor essa polarização?

Temos que olhar com ceticismo, o ceticismo da razão. Racionalmente a coisa não está boa, temos que pensar quais são as alternativas. Não se trata de cair no jogo: você é Bolsonarista ou você é petista. É fazer uma análise de xadrez. Não se pode fazer o jogo dos peões, mas veja o jogo do prisma da rainha e do rei. Quem desses governadores vai sair com condições de enfrentar o Bolsonaro ou o PT? Temos movimentações interessantes. O centrão, apesar das críticas, se uniu e conseguiu com a articulação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, aprovar a reforma da Previdência. Tomou o discurso para ele. Se você for ver, ele praticamente governou o País como se fosse o primeiro-ministro de fato. Não é político talentoso, mas surpreendentemente cresceu e criou uma agenda. Tem outros governadores se destacando com pretensões nacionais.

Como aparece o ceticismo no Brasil?

No período Collor, o clima era o pior possível com toda a corrupção e a inflação gigante. Mas nas eleições de 1994, no governo Itamar Franco, os políticos de diversos partidos sentaram juntos para garantir o mínimo de governabilidade. Eles criaram uma espécie de escoamento da tensão. E surgiu um nome inesperado como Fernando Henrique Cardoso como uma espécie de interventor federal no Ministério da Fazenda. Do outro lado, vários banqueiros financiaram líderes de esquerda. Embora ninguém admita, mas os setores empresariais sentaram com líderes mais à esquerda. Aquele período catapultou o ceticismo da razão. O ceticismo da razão nos leva a fazer cenários.

Esse consenso pode se repetir?

Temos que ver como se dará a eleição nas prefeituras no ano que vem. Se prevalecer esse discurso de segurança e armamento, é um péssimo sinal. Mostra que o discurso do Bolsonaro surtiu efeito. Mas o que não podemos deixar de avaliar é a crise na classe média, o desemprego, a crise nas universidades...

Há ameaça real à democracia?

Todo discurso Bolsonarista é antidemocrático. Toda estratégica jurídica é jogar numa situação limite. Ou governar por medida provisória ou decreto, sem respeitar o processo legislativo. Toda vez que se apresenta uma ideia e essa ideia tem fundamento empírico, o presidente tenta sabotar. Basta ver o que ele fez com o IBGE e o Inpe. Quando analisamos a política como processo, claramente está entrando em risco. Mas como olhamos do ponto de vista de estrutura...ainda não. As instituições estão funcionando, o judiciário está funcionando. A palavra forte hoje é ceticismo da razão. Isso não quer dizer que vamos reviver a ditadura. Mas o clima é ruim e a sociedade está muito dividida.

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