O cyberstalking, assédio por meio da internet, tem se tornado comum com o avanço da tecnologia
O cyberstalking, assédio por meio da internet, tem se tornado comum com o avanço da tecnologia | Foto: Shutterstock

Tornar crime a perseguição obsessiva é um caminho para combater o stalking, e em especial a nova modalidade, o cyberstalking. A FOLHA conversou sobre o assunto com a promotora de Justiça Ana Lara Camargo, do Mato Grosso do Sul, autora do livro “Stalking e Cyberstalking: Obsessão, Internet, Amedrontamento”. Ela lembra que o termo “stalkear” se tornou popular entre os usuários de internet, mas destaca que simplesmente seguir alguém nas redes sociais não tem essa conotação. “Do ponto de vista de um possível ilícito penal, estamos falando de alguém que importuna, que realmente tira a privacidade da outra pessoa, que persegue implacavelmente tanto por meio da internet quanto por meio físico”, pondera.

No caso de assédio virtual, a promotora orienta que a vítima registre os fatos, não destrua as provas e não alimente o contato com o stalkeador. “É importante que a pessoa não destrua a comunicação. Muita gente fica sob tanta pressão emocional com isso, que pensa em excluir as mensagens”, observa. Confira a entrevista:

O que é o stalking?

O stalking é um comportamento doloso, habitual, reiterado, que é consistente em mais de um ato de importunação, de perseguição, de assédio e de atenção indesejada. E ele tem um potencial de acarretar uma violação da intimidade, da privacidade, um temor pela segurança, pela vida e um abalo substancial. A garotada usa hoje o termo stalking popularmente como sendo aquele acompanhamento que você faz de alguém em uma rede social, que é uma maneira de brincar,“ah, fulano está me stalkeando”. O termo se tornou popular nesse sentido, mas tecnicamente falando é evidente que seguir simplesmente uma rede social não é stalkear. Do ponto de vista de um possível ilícito penal, estamos falando de alguém que importuna, que realmente tira a privacidade da outra pessoa, que persegue implacavelmente tanto por meio da internet quanto por meio físico mesmo.Há projetos em tramitação na Câmara dos Deputados para criminalizar o stalking, mas hoje ele é enquadrado em outro crime.

Não existe um tipo penal específico de stalking no Brasil. O que fazemos como promotor de Justiça? A gente vê o fato concreto que a pessoa está narrando e, por exemplo, a gente trabalha com o artigo 165 da lei de contravenções penais, que é um decreto-lei já bastante antigo, decreto 3.688 de 1941, que tem um delito que se chama molestar ou perturbar a tranquilidade de alguém por provocação ou qualquer outro motivo reprovável. É evidente que uma perseguição reiterada, que uma importunação desse nível, perturba a tranquilidade das pessoas. Mas é um delito muito antigo, ele não cobre a gravidade de uma conduta como essa quanto mais em termos de cyberstalking, que é hoje a modalidade mais praticada, fazendo uso da internet ou por comunicação direta, ou por meio de redes sociais.

E qual é a pena desse crime já existente?

Em regra vai responder ao delito em liberdade. Prisão simples de 15 dias a 2 meses ou multa de 200 mil réis a dois contos de réis, para você ter uma ideia de como é antiga. Mas é o que tem na lei. Evidentemente que quando as condutas caracterizam outros delitos, além de perseguir, de importunar e molestar a pessoa, quando também há ameaça, é usado o 147 do Código Penal.

Qual é a diferença para o cyberstalking?

É o mesmo tipo de conduta, é um padrão de atenção indesejada, perseguição, assédio, mas que se utiliza da internet. Em termos de cyberstalking, falamos em três modalidades. O que a gente chama de assédio por comunicação direta, que é o modo mais comum, em que a pessoa envia mensagens de conteúdo ofensivo, de conteúdo pornográfico, mensagem de ódio, faz um contato pessoal com sua vítima, inunda caixa de e-mail, esse é o assédio por comunicação direta.

Outra modalidade de cyberstalking é de assédio por uso da internet, então a pessoa vai se utilizar de página de rede social, de páginas oficiais de imprensa, classificados, vai publicar informação sensível, vai pegar aquela foto da pessoa que ela está stalkeando, anunciar aquela pessoa para a prostituição, por exemplo. Usar discurso de ódio usurpando a identidade da vítima e simulando para gerar “haters” para ela.

E também há o assédio por intrusão informática, que é aquele que se aproveita de uma brecha de segurança. Instala um malware no dispositivo de informática, passa a controlar suas postagens, vigiar sua câmera, é um tipo menos comum porque exige um pouco mais de habilidade tecnológica, certo tipo de hackeamento.

Os mais comuns são assédio por comunicação direta, perseguir, acompanhar diretamente por uso da internet de uma maneira geral.

A medida protetiva funciona para esses casos?

Funciona. Em contextos de violência doméstica, a medida protetiva normalmente vai registrar pela perturbação da tranquilidade, é aplicada normalmente a lei Maria da Penha para essas condutas. O que não existe é a conduta em si ser um crime. Essa conduta não é um crime. Então quando a pessoa está sendo vítima disso, ela vai registrar o quê? Ela vai narrar o fato dela, esperar que aquela conduta caiba em ameaça, que a perturbação da tranquilidade caiba em algum tipo. Não existe um delito que a autoridade policial vai olhar e registrar por esse delito. Depende muito mais de como aquele agente que receber a denúncia vai enquadrar aquela vítima e como aquela vítima vai ter condições, inclusive emocionais, para que o agente público entenda que é um stalking. Por isso, a conduta precisa virar crime na legislação brasileira.

Quando as interações ultrapassam o limite e viram stalking?

Quando aquilo que se torna uma atenção indesejada, uma importunação, quando dou um “não” e a pessoa continua acompanhando, seguindo, e a outra pessoa se sente violada na sua intimidade. É uma pessoa que não sabe receber um “não”, uma pessoa que não lida bem com a frustração ou tem um quadro psiquiátrico, às vezes é um obsessivo. E veja bem, quando estamos falando de quadro psicológico, não quer dizer que a pessoa seja inimputável nos termos da lei. Ela continua respondendo penalmente pelos atos dela. A questão é, quando eu lhe dei um “não”, quando eu digo “eu não quero mais essa abordagem, não me interesso por essa atenção”, e você continua me perseguindo, você continua indo atrás de mim, me acuando, mandando mensagem, aparecendo onde eu frequento.

A senhora tem exemplos concretos para citar?

Trabalhei dez anos com promotoria de violência doméstica. Ao fim do relacionamento, uma coisa é aquele homem que diz: “ah, acabou o relacionamento” e ele tenta voltar, vai na casa da pessoa. Outra coisa é aquele homem - já atendi inúmeros casos assim - que faz 50 ligações no telefone da mulher, liga no telefone da empresa onde ela trabalha, fica na porta da empresa onde ela trabalha. Se ele tem a senha do e-mail da mulher, porque ele tinha no âmbito do casamento, manda e-mail para todo mundo, para a empresa, para o patrão, para o colega de trabalho. Não raro, ele gera demissão para essa pessoa porque nem sempre o ambiente de trabalho vai ter condição de administrar uma situação como essa. Uma pessoa estranha parada na porta.

É aquele cara que segue a mulher na rua, de manhã, caminha até o ponto, ele está atrás. Ela chega ao trabalho, ele está. É diferente de procurar a mulher após o término, receber um não e se propor dentro daquilo que ela permitiu. Essa reiteração da perseguição do assédio é isso, fazer da vida do outro um inferno. Em casos de stalking nos quais a mulher ainda não conhece seu assediador, a sensação de pânico e de desespero e as crises de ansiedade que ela tem são muito grandes. Porque essa pessoa tem informações sobre você, te acompanha, e você sequer conhece a pessoa. O limite é esse, saber receber um “não”.

O que uma pessoa que está sendo vítima de cyberstalking deve fazer?

Primeiro, a pessoa precisa documentar esses fatos. Porque são muitos. Cada um acontece em um dia e uma hora diferente, às vezes quando a pessoa vai procurar um advogado, a Defensoria Pública, o Ministério Público ou até a própria delegacia ela já não lembra do dia que foi, qual fato que aconteceu, então é muito importante que ela documente. Em tal dia tinha tantas ligações, em tal dia ele estava no meu trabalho.

Depois, é importante que a pessoa não destrua a comunicação. Porque muita gente fica sob tanta pressão emocional com isso, que pensa em excluir as mensagens, é uma defesa psíquica da pessoa, como se apagando tudo o fato fosse desaparecer. Só que quando destruo isso, também destruo a prova do processo. É muito importante que a pessoa preserve as conversas. É importante conseguir catalogar datas, horários e fatos e depois documentar isso. Não desaparecer com as provas porque elas serão necessárias, se for registrar na delegacia e levar o celular, muitas delegacias estão preparadas para fazer o que chamamos de “auto de constatação”, naquele momento que você registra.

A gente sempre orienta que a pessoa não alimente o contato. Muitas vezes a pessoa acha que conversando com o outro vai convencer [a deixá-la em paz], mas se você já deu mais de um “não”, não adianta, vai ter que tomar providências, ou no âmbito criminal ou no âmbito cível. Não adianta responder mais. O importante da resposta é o momento do “não”, até para que no curso do processo não venha da outra parte a ideia de que você está alimentando aquilo, essa coisa de “responsabilizar a vítima” pelo crime que ela está sofrendo. Documentar é o mais importante e aí vai se decidir se o caminho é criminal. Há caminhos cíveis também, há caminhos por dano material. Antes da internet esse assédio ocorria mais por meio físico, a pessoa ia lá, deixava objeto, animais, riscava o carro.