A descoberta recente de uma rinha clandestina de cães em Mairiporã, na Grande São Paulo, gerou indignação por todo o País. Para o secretário-geral do CRMV-PR (Conselho Regional de Medicina Veterinária), o médico veterinário Leonardo Nápoli, o caso escancara uma realidade ainda comum no Brasil, com modalidades competitivas que usam animais. Isso, na opinião do profissional, vai contra a evolução da própria lei que tutela os animais.

Imagem ilustrativa da imagem Cidadão é o melhor fiscal contra maus-tratos a animais
| Foto: iStock

O Senado Federal aprovou recentemente a ampliação da pena para o crime de maus-tratos a animais que, se aprovada pela Câmara dos Deputados, determina uma pena de 1 a 4 anos de detenção, além de multa. Em entrevista à FOLHA, Nápoli fala sobre como o caso pode impactar a sociedade e de como os conceitos de maus-tratos vêm se transformado, reconhecendo os animais de pequeno e médio porte, de companhia ou de produção, como seres sencientes, ou seja, seres com capacidade emocional para sentir dor.

“O que aconteceu em Mairiporã, embora muito trágico, pode ser um marco nessa questão dos maus-tratos, trazendo à tona uma realidade. Foi um choque para a sociedade”, alerta.

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| Foto: Câmara Municipal de Curitiba/Divulgação

Como o Conselho Estadual de Medicina Veterinária lida com a questão cultural das rinhas e outras modalidades de competição entre animais?

A operação da polícia em Mairiporã escancarou uma situação que não é novidade para nós, infelizmente. Além da rinha de cães, no Brasil ainda é muito comum a briga de galos, talvez até mais forte. É uma questão cultural. Até entendo que houve uma diminuição dessas atividades, ditas esportivas e completamente ilegais. A descoberta da polícia foi uma surpresa para nós mais por como ela estava organizada, pelo tamanho, a proporção e quantidade de pessoas envolvidas. Até o momento, temos apenas as informações que chegaram até nós pela mídia e nos surpreende muito o fato de ser uma rede estruturada, internacional. Essa proporção, assusta.

O Conselho é uma autarquia federal, de fiscalização e registro de profissionais e empresas. Nossa atuação é na interface com médicos veterinários e zootécnicos, essa é a nossa área de competência. Quando percebemos, através de denúncias ou outras situações, qualquer irregularidade na atuação do médico veterinário ou da empresa registrada no Conselho, temos que aplicar a regulação pertinente ao caso e isso vale tanto para a pessoa física quanto para a pessoa jurídica.

Temos a obrigação de fiscalizar e verificar se os profissionais e empresas estão atendendo a todas as regulamentações. No caso específico dessa rinha de pit-bulls, outra legislação não foi cumprida: a Lei Ambiental. É evidente que ali também acontecia um crime ambiental. Nós atuamos com processos administrativos, para as empresas, e éticos, no caso dos profissionais, com risco de penalização pecuniária e, no caso de maus-tratos, temos a obrigação de notificar o Ministério Público do Meio Ambiente para que seja conduzida uma investigação ou procedimentos nas áreas cível e criminal.

Também é nosso dever orientar profissionais e empresas sobre maus-tratos e bem-estar animal, para que esses personagens possam adotar condutas corretas em relação a essas questões.

O caso de Mairiporã foi um dos mais comentados nas redes sociais, inflamando discussões e colocando outras atividades que envolvem animais na berlinda. Como é possível elevar o nível da discussão?

Temos que tomar muito cuidado com o aspecto emocional que envolve esse caso. Somos todos veterinários aqui no Conselho e é lógico que tem uma questão emocional ao lidar com esse episódio. No entanto, precisamos deixar a emoção de lado e analisar a questão da legislação e regulamentação a ser aplicada. Temos que tomar cuidado com as informações que vêm das redes sociais e fazer uma triagem para ver o que realmente é fato e a proporção real das coisas até para não gerar uma falsa expectativa na sociedade e ainda mais desinformação.

Sem dúvida nenhuma, o ocorrido abre espaço para uma discussão sobre outras modalidades ditas esportivas, com a utilização de animais e a comparação com os rodeios podem surgir. Por mais que a situação nos rodeios tenha melhorado através de uma fiscalização mais rígida, fica difícil para nós, técnicos, descaracterizarmos completamente como maus-tratos. A linha é muito tênue.

Isso vale não só para os rodeios, mas também para outras modalidades como a prova do laço, a Farra do Boi em Santa Catarina e tantas outras formas de competição. O caso da rinha dos pit-bulls traz à tona não só a questão do cão, mas também de outras espécies que também são. Tem outras espécies, animais sencientes e propensos a sofrerem maus-tratos.

Um médico veterinário estava entre os envolvidos e detidos pela polícia na operação. Isso surpreendeu o Conselho? Qual seria o comportamento ideal de um profissional diante de uma situação como aquela da rinha?

O fato de ter um médico veterinário envolvido é claro que surpreende, e muito. Não tem como entender o seu envolvimento e não existe justificativa nenhuma para atuação dele, nem mesmo para tratar os animais feridos. O nosso Código de Ética prevê obrigações legais como aquela de denunciar e, não fazendo isso, ele se torna passível de um processo ético, no mínimo. O médico veterinário ali presente é a primeira pessoa que, no nosso entendimento, tem o conhecimento técnico da questão senciência, dos conceitos de maus-tratos e bem-estar animal. A partir do momento que é registrado no Conselho de Veterinária, ele tem a obrigação legal de denunciar e deveria ser o primeiro a fazer isso. A conduta correta seria jamais participar, de nenhuma forma, de uma situação dessas e, partir do momento que tem o conhecimento de algo do tipo, procurar imediatamente uma delegacia e fazer a denúncia para que o caso seja investigado.

Quais as consequências para esse profissional envolvido? Ele pode perder o direito de exercer a profissão?

Quando identificados atos que incorram contra o Código de Ética ou contra qualquer outra resolução do Conselho Federal ou outras legislações, acontece a abertura de um processo ético e o julgamento, passível de penalidades. A perda do direito de exercício profissional vai depender muito dos fatos em si. Para chegar a uma cassação, é preciso passar por várias situações extremas e isso pode acontecer também se houver antecedentes. Dependendo do caso e de como isso for julgado, dos fatos apresentados e de como foram qualificados dentro de um processo ético, a perda do direito de exercer a profissão pode acontecer.

Como o senhor avalia a nova legislação brasileira sobre os maus-tratos? A lei acompanha uma evolução que já acontece em outros países?

A lei ambiental brasileira já é uma lei bem rigorosa, ampla e moderna, o que coloca o Brasil à frente de muitos países em relação a isso. Sem dúvida nenhuma temos uma questão difícil quanto à capacidade do Estado de fiscalizar e punir, mas a legislação existe. A nova lei aprovada no Senado a torna ainda mais rigorosa e isso é bom, é positivo. É uma evolução da sociedade que o Brasil tem acompanhado. A questão dos direitos dos animais acompanha a evolução da sociedade sobre outros aspectos importante; quanto aos maus-tratos a evolução foi ainda mais rápida, aconteceu em menos de 20 anos. E assim deveria ser com outros movimentos.

É interessante notar que a própria leitura do Poder Judiciário em relação ao status dos animais mudou bastante. Juristas e juízes já têm uma percepção diferente do animal como um ser e não como um objeto. Isso é mais evidente, por enquanto, quando se fala dos animais de pequeno porte, de companhia, que já são entendidos como parte da família humana. Infelizmente ainda tem uma dicotomia entre a questão do animal de companhia e o animal de produção, usado para alimento e outras formas econômicas.

Quais os novos desafios da legislação? Ela poderia evoluir ainda mais?

É uma evolução constante, que acompanha as mudanças na própria sociedade. No Brasil ela é já é bem moderna e, sem dúvida, quanto mais rigorosa, melhor será para coagir uma situação como essa que vimos no caso da rinha de Mairiporã e tantos outros que não conseguem uma visibilidade como essa na mídia. O que precisa também continuar evoluindo é a aplicação da lei, a leitura e interpretação do Judiciário e de diversos setores da sociedade em relação à condição jurídica dos animais, sobre a questão dos maus-tratos e do bem-estar animal.

O conceito de maus-tratos contra animais também evoluiu? Como essa nova visão pode chegar ao cidadão comum?

Certamente, tanto que a Resolução do Conselho Federal de Medicina Veterinária, número 1.236, de outubro de 2018, tem sido utilizada inclusive pela Polícia Federal, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e pelo próprio Poder Judiciário para contextualizar e definir maus-tratos, usando isso até para instruir e fundamentar seus processos, complementando a Lei de Crimes Ambientais. Essa resolução caracteriza melhor o que vem a ser maus-tratos. Por exemplo: o inciso 3 do artigo 5º define como maus-tratos o ato de “agredir fisicamente ou agir para causar dor, sofrimento ou dano ao animal”. Coisa muito grave para um profissional, mas que também serve para o cidadão comum. Mesma coisa para o abandono de animais, ou para a manutenção de animais em clausura, com outros animais de espécies diferentes ou da mesma espécie numa situação que o aterrorize ou o agrida fisicamente.

Quanto mais o cidadão tiver conhecimento e acesso a essas informações, quanto mais isso for internalizado na sociedade, melhor será o cenário de controle e fiscalização. O melhor fiscal é o cidadão, que convive com isso todos os dias, às vezes até sem saber que determinada situação caracterizaria um crime, uma situação de maus-tratos, que ele simplesmente não tinha instrumentos para reconhecer, sem saber que poderia ter agido denunciando o fato. Esses conceitos já estão sendo difundidos e é muito importante esse trabalho, com as ONGs de proteção animal fazendo um trabalho importante. O que aconteceu em Mairiporã, embora muito trágico, pode ser um marco nessa questão dos maus-tratos, trazendo à tona uma realidade. Foi um choque para a sociedade, que está sensibilizada. A repercussão despertou o interesse sobre o tema.

Como o senhor avalia a situação no Paraná e como o Conselho Regional vem atuando?

A questão dos maus-tratos e do bem-estar animal é nossa rotina. Atuamos junto a escolas e universidades com pesquisa e estudos, além de dar subsídios a outros órgãos, como prefeituras, para projetos de castração ou controle de população. Nossa fiscalização é muito direcionada, com um olhar atento ao bem-estar animal e o Paraná sempre foi muito atento a isso.