Não é de hoje que a cultura hip hop, de modo geral, e o rap, em especial, passou a ser investigado pela academia.


O boom de pesquisas universitárias em torno deste universo, que transformou a história da cultura popular em muitos países, começou nos Estados Unidos, na primeira década deste século. Agora passa a ocupar espaço relevante na pesquisa científica também no Brasil.


“Racionais MC´s: entre o gatilho e a tempestade” (Editora Perspectiva, 320 páginas, R$69,90) pretende romper a bolha universitária e alcançar o mundo da cultura pop com 12 artigos sobre um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos.


Duas doutoras das novas gerações organizaram o projeto: a professora do Departamento de Ciências Sociais da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Daniela Vieira, e a professora Jaqueline Lima dos Santos, antropóloga que leciona na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


A dupla também assina “Efeito Colateral do Sistema: A Formação do Grupo de Rap que Contrariou as Estatísticas”, artigo que abre o primeiro capítulo, “História e Historiografia do Grupo”.


O livro tem mais quatro temas: “Raça e Masculinidades”, “Estética e Poética”, “Produção das Desigualdades” e “Transformações e Mercado da Música Rap”. “Muitas pessoas que foram formadas nas gerações hip hop como eu e a Jaqueline, hoje estão na universidade - não só, mas também - pelo hip hop. Isso está ligado também às políticas afirmativas. Há uma mudança na cor da universidade, nos interesses da universidade”, analisa Daniela. “São fenômenos que vão ao encontro destes estudos acadêmicos sobre os Racionais.”


A obra certamente não é a primeira sobre a grife mais bem sucedida da música negra brasileira contemporânea, mas se beneficia de um repique de popularidade.

“O rap dos Racionais é quase uma unanimidade na minha geração. Mesmo quem não gosta muito de rap respeita a obra”, diz Daniela, uma mulher que nasceu e cresceu em Andradas, cidade mineira cercada pelo verde bucólico da paisagem da Serra da Mantiqueira, contraste quase absoluto com o “bioma” radicalmente concretado e violento dos arrabaldes paulistanos, o berço da cultura hip hop.


Formado 35 anos atrás, o grupo Racionais MC´s voltou aos holofotes da grande mídia com o impactante documentário Racionais MC´s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo, produzido pela Preta Portê Filmes e dirigido por Juliana Vicente. Lançada pela Netflix em novembro do ano passado, a série foi sucesso de público e crítica.


A grande repercussão do podcast original da Spotify Mano a Mano, no ar desde 2021, também ajudou a renovar o público do grupo e a colocar a lupa dos cronistas no exame sobre o real tamanho de Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown, e seus três parceiros, Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), Edivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay) no imaginário nacional.


O ritmo, a poesia, a contundência e o brado forte do seu líder, Mano Brown, colocaram o quarteto em um panteão no qual poucos chegaram. Entre velozes retas e curvas fechadas, a viagem deixou legados. O grupo paulistano revelou uma fotografia inédita da sociedade brasileira e sacudiu a juventude negra, alcançando os brancos da classe média na virada do século. Uma trajetória vencedora, embora cheia de percalços e tensões.


“As canções dos Racionais interpretam o Brasil, um Brasil distinto daquele interpretado pela bossa nova, pelo tropicalismo, pelas músicas de protesto dos anos 1960/70 ou pelo rock a partir dos 1980. É esta interpretação que motiva a pesquisa”, explica.


O seleto de artigos sobre o quarteto que uniu as visões do norte e sul periféricos da Pauliceia faz parte de uma série, O Hip Hop em Perspectiva, na qual Daniela e Jaqueline também são organizadoras.


As pesquisadoras trabalharam ainda no primeiro volume, como tradutoras, no clássico “Barulho de Preto” (Black Noise: Rap Music and Black Culture in Contemporary, de 1994), da nova-iorquina Tricia Rose, influente socióloga da Universidade de Brown.


A escolha do tema do segundo volume surgiu em comum acordo, após uma atividade promovida pelo Sesc. “A ideia do livro surgiu em um curso durante a pandemia. A maioria dos colaboradores da obra estava reunida nesta ocasião. Alguns são mestres, outros doutores, todos envolvidos em pesquisa sobre hip hop”, explica Daniela. “A ideia foi trazer uma visão ampla da obra dos Racionais, que está contemplada na escolha dos eixos."


Os quatro álbuns dos Racionais registram uma interpretação do País não só de um ponto de vista inusitado, imerso na pobreza extrema das grandes cidades, mas também num tom diferente de outras correntes musicais identificadas com a população mais marginalizada.

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“As canções dos Racionais interpretam o Brasil, um Brasil distinto daquele interpretado pela bossa nova, pelo tropicalismo ou pelas músicas de protesto dos anos 1960/70 e do rock a partir dos 1980.  É esta interpretação que motiva a pesquisa", analisa a professora da UEL Daniela Vieira
“As canções dos Racionais interpretam o Brasil, um Brasil distinto daquele interpretado pela bossa nova, pelo tropicalismo ou pelas músicas de protesto dos anos 1960/70 e do rock a partir dos 1980. É esta interpretação que motiva a pesquisa", analisa a professora da UEL Daniela Vieira | Foto: Divulgação


“Um país extremamente desigual, racista, que ainda carrega as marcas do colonialismo, que mata um jovem negro a cada 23 minutos e que se preocupa com o sistema carcerário e o critica com eloquência. Este é o Brasil que grita nos versos dos Racionais.”


O livro não surge por acaso no contexto universitário. De acordo com Daniela, os estudos avançados sobre hip hop são uma forte tendência nas ciências sociais. “Para se ter uma ideia, apenas este ano eu já participei de duas bancas sobre trabalhos que abordam a obra dos Racionais”.

O ritmo, a poesia, a contundência e o brado forte do seu líder, Mano Brown, colocaram os Racionais em um panteão onde poucos chegaram
O ritmo, a poesia, a contundência e o brado forte do seu líder, Mano Brown, colocaram os Racionais em um panteão onde poucos chegaram | Foto: João Wainer/Folhapress


Contudo, Daniela avisa que a obra foi pensada para circular fora do ambiente acadêmico, para um público “diverso e amplo”.


Enquanto sua obra é vasculhada pelos jovens universitários, enquanto teorias, hipóteses, teses são debatidas em salas de aulas ou no degradê de rostos nas telas de meetings, os Racionais MCs não param, ainda preocupados em ampliar seu repertório de versos indeléveis.


Recentemente, Ice Blue causou furor na crônica especializada ao publicar nas redes sociais que o quinto disco deve ter nada mais nada menos que 30 faixas e que quatro videoclipes já foram gravados.


“Eles estão gravando o próximo álbum e então estamos negociando datas para que eles estejam no lançamento do livro em São Paulo”, revelou Daniela. Londrina está no roteiro e, em breve, haverá sim uma noite para apresentar o livro.

O livro “Racionais MC´s: entre o gatilho e a tempestade” pretende romper a bolha universitária e alcançar o mundo leigo com 12 artigos sobre um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos
O livro “Racionais MC´s: entre o gatilho e a tempestade” pretende romper a bolha universitária e alcançar o mundo leigo com 12 artigos sobre um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos | Foto: Reprodução

Nada mais justo para uma cidade que já provou por várias vezes a sua paixão pelo ritmo criado pelos jamaicanos de Nova York nos anos 1970 e consagrado por aqui por uma banda que tem o nome em homenagem à fase mais brilhante e controversa de Tim Maia.


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