Fiquei com ótima impressão da diretora Sara Colangelo quando vi há algumas semanas o sóbrio e muito eficiente “Quanto Vale?” , seu terceiro e mais recente longa-metragem, aquele do valor da vida das vítimas do 11/9, e rastreei a disponibilidade de sua ainda curta filmografia. Localizei. A segunda obra da cineasta, “A Professora do Jardim de Infância”, de 2018, atualmente na Amazon Prime, não tem uma pegada forte em seu início por causa de uma premissa enganosa. Produto típico da produção indie dos EUA, há dois anos teve trânsito intenso pela via do streaming (não passou pelas salas brasileiras), comprado pela Netflix mas ainda ficando de fora do marketing intenso (efeito pandemia). Certamente a provedora de filmes por assinatura pensou tratar-se apenas de uma típica história de aspirações femininas com toques de crítica social.

"A Professora do Jardim de Infância" faz uma parábola crítica: a existência de um sistema que diminui o talento das crianças, em vez de incentivá-lo
"A Professora do Jardim de Infância" faz uma parábola crítica: a existência de um sistema que diminui o talento das crianças, em vez de incentivá-lo | Foto: Divulgação

Oportuno e feliz equívoco. Como agradável surpresa, a história de um drama humano sombrio (às vezes lembrando os filmes do austríaco Michael Haneke), que mal é percebido nos primeiros 15, 20 minutos, devido à ausência uma explícita estética de gênero, e que se revela pelo fato de a protagonista ser conhecida aos poucos, uma opção narrativa notável à medida que o filme se torna imprevisível e consegue engendrar um final inesperado.

“The Kindergarten Teacher” é o estudo psicológico de uma jovem mulher da classe média de Nova York, Lisa Spinelli, dedicada professora do jardim de infância que vai longe demais para proteger e incentivar o talento poético de um de seus pequenos alunos, Jimmy, de 5 anos. Quando um dia, surpreendentemente, o menino recita de improviso um poema, Lisa pergunta à babá dele de onde ele tira os versos. Ela descobre que ele é um pequeno prodígio. E decide então se apropriar dos poemas como se a criação fosse dela (ela frequenta classes de poesia). Mas sua paixão pelo talento de Jimmy torna-se uma obsessão, com consequências perigosas. Lisa tentará proteger e nutrir o talento do menino de uma forma um tanto perturbadora.

O filme, refilmagem muito fiel de um drama israelense de 2014 dirigido por Nadev Lapid (no Brasil somente exibido na 43ª Mostra de Cinema de SP), é desconcertante (1) na medida em que a personagem de Lisa acumula tensões ao contemplar Jimmy; (2) pela ambiguidade que cerca sua motivação (nenhuma conotação sexual), e (3) por causa das questões que deixa sem resposta, apenas sugerindo: o potencial prejudicial do instinto materno, e se vale a pena salvaguardar a arte a qualquer custo.

Se há algo realmente sedutor nesta história, é a personagem de Lisa. Ela é uma mulher quarentona que trabalha como professora de jardim de infância há vinte anos e tem uma vida bastante estável. Tem um marido que a adora e dois filhos adolescentes com quem também se dá bem. Ela ama seu trabalho e frequenta um curso de poesia várias vezes por semana. Tudo muito convencional. No entanto, Lisa não consegue escrever um bom poema, o que a frustra e a lembra de uma época em que ela era mais criativa, quando tinha talento. Por isso, o aparecimento daquela criança que cria poemas do nada gera uma resposta exagerada, pois, de alguma forma, ela tenta consertar sua mediocridade protegendo o talento da criança.

Todo esse complexo material é tratado com sutileza louvável que, é claro, não teria sido possível sem a atuação impecável de Maggie Gyllenhaal – ela acaba de estrear na direção no Festival de Veneza, onde apresentou “The Daughter”, prêmio de melhor roteiro. 'The Kindergarten Teacher' aproveita para fazer uma parábola crítica que, no contexto americano, faz ainda mais sentido: a existência de um sistema que diminui o talento das crianças, em vez de incentivá-lo.