Quem me conhece sabe do meu amor pela música clássica. Mozart, Beethoven, Haendel, Haydn, Chopin, Shostakovitch, Dvorak, Villa-Lobos, Sibelius, Bruckner, Arvo Part e, acima de todos, João Sebastião Bach são como velhos amigos para mim. Posso dizer, sem exagero, que eles me salvaram a vida diversas vezes. No entanto, existe um autor cuja música, embora grandiosa e belíssima, eu não consigo ouvir. Trata-se do compositor alemão Richard Wagner.

Imagem ilustrativa da imagem Tolerância zero com o nazismo
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Sei que é uma falha minha. Eu deveria ser capaz de separar a obra wagneriana, sublime em todos os sentidos, do cidadão Richard Wagner, antissemita, egocêntrico, maldoso até as entranhas. Consigo fazer essa distinção quando leio, por exemplo, Máksim Górki ou Louis-Ferdinand Céline, respectivamente cúmplices do comunismo e do nazismo. Mas com Wagner é diferente. Eu simplesmente não consigo ouvir “Lohengrin”, “O Navio Fantasma” ou mesmo o avassalador prelúdio de “Tristão e Isolda” sem me lembrar dos milhões de judeus que pereceram nos campos de extermínio nazistas.

Sim, eu admito que é absurdo. Wagner não tem culpa nenhuma pela utilização perversa que os nacional-socialistas fizeram de sua obra. Mas o fato é que eu não consigo escutá-lo mais de dez minutos sem pensar nos campos da morte, nos fornos crematórios e na terrível palavra com que os guardas da SS anunciavam mais um dia de trabalho escravo, desespero e dor aos prisioneiros de Auschwitz: “WSTAWAC!” (Termo que significa “Levantar!” em polonês.)

Pois foi com grande espanto que assisti ao vídeo em que o secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, utilizou um trecho da ópera “Lohengrin” como música de fundo e fez um discurso ardorosamente nacionalista. Em um dos trechos do discurso, Alvim diz:

“A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.”

Em 1936, o ministro nazista da propaganda, Joseph Goebbels, disse algo parecido:

“A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.”

Não, Alvim não citou Goebbels. Mas fez o que se chama tecnicamente de “paráfrase”. Em nota, o ex-secretário disse que houve apenas uma “coincidência retórica” e que jamais citaria Goebbels. Quem lida diariamente com as palavras sabe que, às vezes, somos traídos pela memória. Todos os dias corremos o risco de dizer o que algum facínora também disse. Quando se trata de um nazista, ativa-se imediatamente aquele truque retórico que Leo Strauss intitulou “reductio ad Hitlerum”. Se você disse algo que Hitler disse ou fez alguma coisa que Hitler fez ou tem uma opinião que Hitler também tinha — ah, então você é um nazista. Não é esse o caso de Alvim, muito menos do governo que ele integra.

Tudo considerado, penso que a coincidência retórica e musical no discurso de Alvim foi, na melhor das hipóteses, infeliz e bizarra; na pior, revoltante e inaceitável. Com nazismo e comunismo, a lei moral é clara: tolerância zero, e mais nada.

Alvim acertou ao pedir demissão; Bolsonaro acertou ao aceitá-la.

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