Em 1949, o filósofo Theodor Adorno disse que a poesia se tornara impossível depois de Auschwitz. Mas Adorno estava errado; e um dos primeiros a demonstrar que a beleza literária pode nascer do horror histórico foi justamente um ex-prisioneiro de Auschwitz, o judeu-italiano Primo Levi (1919-1987), cujo centenário de nascimento comemorou-se no ano passado.

Imagem ilustrativa da imagem Primo Levi, o poeta de Auschwitz
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Os 11 meses que o jovem químico de Turim passou no campo de extermínio nazista são o tema da obra-prima “É isto um homem?”, de 1947. Trata-se de um dos mais pungentes e sinceros relatos já publicados sobre o inferno concentracionário. Com uma notável capacidade de observação e lucidez, Levi descreve os sentimentos e o universo mental de alguém que vive na presença da fome, da escravidão, da humilhação, da violência, da tortura e da morte. Mesmo nessas condições extremas, Levi é capaz de encontrar pequenos pontos de luz e esperança.

Dias atrás, tive a alegria de encontrar o livro “Mil Sóis”, coletânea de poemas de Primo Levi escritos de 1946 até o ano de sua morte, traduzidos para o português por Maurício Santana Dias. E hoje, no dia em que o mundo civilizado lembra os 75 anos da libertação de Auschwitz, eu gostaria de compartilhar com os meus sete leitores, em homenagem às vítimas do nacional-socialismo, os seguintes versos de Primo Levi, que serviram de epígrafe à obra mais famosa do autor:

SHEMÀ

Vós que viveis seguros

Em vossas casas aquecidas

Vós que achais voltando à noite

Comida quente e rostos amigos:

Considerai se isto é um homem,

Que trabalha na lama

Que não conhece a paz

Que luta por um naco de pão

Que morre por um sim ou por um não.

Considerai se isto é uma mulher,

Sem cabelos e sem nome

Sem mais força de recordar

Vazios os olhos e frio o ventre

Como uma rã no inverno.

Meditai que isto aconteceu:

Vos comando estas palavras.

Gravai-as em vossos corações

Estando em casa, caminhando na rua,

Deitando, levantando:

Repeti-las a vossos filhos.

Ou que vossa casa se desfaça,

A doença vos impeça,

Vossa prole desvie o rosto de vós.

10 de janeiro de 1946