De vez em quando, nasce a manhã inexistente. Abro os olhos, a luz do dia chega sem escândalo, as cortinas estão imóveis – mas é a manhã inexistente. Tem dias em que eu acordo nela. Dentro dela. Eu e ela. Ela.

Imagem ilustrativa da imagem Manhã inexistente
| Foto: Kyoshino/iStock

Somadas, quanto tempo dariam todas as manhãs inexistentes desta vida? Manhãs quando tudo acabou, manhãs pós, manhãs pré, manhãs durante, manhãs anteriores a tudo, manhãs de dúvida, manhãs de calor assassino, manhãs-Neosaldina, manhãs-Gatorade, manhãs ateias, manhãs traidoras, manhãs mentirosas, malditas sejam para todos os tempos.

Eu fico monstruoso na manhã inexistente. Levanto a voz, persigo as paredes, ouço rádio fora de sintonia, digo frases desconexas ao telefone. Na manhã inexistente, sou indigente e apátrida. Poderia deixar meu amigo Preto, meu amigo Zé, meu amigo Pafu, meu bar, meus empregos, minhas fontes de renda, meu concerto de Bach, minha novela de Tolstói, minha fotografia da casa de Henry Miller em Paris. Poderia abandonar minha família e minha casa; meu almoço e meu sonho; minha cerveja e minha água. Até meu cachorro eu poderia abandonar. E ele me olharia triste, com cara de pidoncho – porque, afinal de contas, pede-se muito na manhã inexistente.

Deus existe? Existe. E a manhã inexistente? Inexiste.

Eu morreria de fome e de sede se a vida fosse a manhã inexistente. Perderia a profissão, pois não saberia mais ler nem escrever. E o que me tornaria? Ventanista? Motorneiro de bonde? Frentista de posto automático? Vocalista de banda instrumental? Provador do vinho que acabou? Estudante já formado? Professor de ninguém? Revisor de um texto em ideogramas desconhecidos? Não adianta, todas essas ocupações já afundaram no abismo da manhã inexistente.

Sou um perdulário de manhãs. Gastei tantas que fui à bancarrota. Meu limite no banco estourou. Todas as manhãs inexistentes começam no vermelho; depois tudo é branco, branco, branco. Não sei de onde vem tanta luminosidade. A manhã inexistente é o primeiro círculo do Inferno, o mais próximo da saída.

Tenho ideias ridículas na manhã inexistente. Pintar o chão de teto e o teto de chão. Virar mendigo. Dormir na máquina de lavar. Abrir um estabelecimento comercial chamado Bar Boleta. Fingir-me de surdo e cego. Dançar bolero comigo mesmo. Tomar água direto na torneira. Iniciar uma peregrinação ao... ao... ao gramado da Universidade onde a garota perdeu o brinco. Viajar para Mongaguá e Itanhaém – e depois, na praia, ficar repetindo esses nomes difíceis: Mon-ga-guá! I-ta-nha-ém! Mon-ga-guá! I-ta-nha-ém! Mon-ga-guá! I-ta-nha-ém! Mon-ga-guá! I-ta-nha-ém! Mon-ga-guá! I-ta-nha-ém!

Nas manhãs inexistentes, farei uma canção do medo. Letra e música. Olharei para tudo, e tudo será medo. Refrão das coisas. Colher: medo. Copo: medo. Lençol: medo. Banheiro: medo. Caneta: medo. Computador: medo. Jornal: medo. Carteirinha da biblioteca: medo. Relógio: medo. Janela: medo. Medo: medo.

A manhã inexistente muitas vezes é tarde. E quando ela chega à noite – aí, então... Meu Deus, quando ela chega à noite! Jesus, Maria e José, quando ela chega à noite! Paulo, João, Lucas, Mateus, Marcos, quando ela chega à noite! Jó! Elias! Jonas! Rute! Moisés! Jacó! David! Pai, Filho e Espírito Santo, quando ela chega à noite! Deus me proteja para que as manhãs inexistentes não cheguem à noite. Deus me proteja e me perdoe.

(Crônica publicada originalmente em 27 de fevereiro de 2003.)