Esta rua, meu amigo, já teve outro nome. Antes do asfalto, ela foi uma estrada de terra – pó e lama, conforme o tempo. Antes de ser uma estrada, ela foi uma trilha no meio da mata subtropical, aberta a facão pelos caboclos que sumiram ou morreram de malária, febre amarela, esquistossomose. Caminhas sobre essas antigas trilhas, hoje soterradas, mas não menos verdadeiras.

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Se voltares um pouco mais no tempo, verás que a picada foi aberta pelos caboclos sobre um velho caminho de capivaras. E as capivaras – esses grandes roedores, parentes dos esquilos – bebiam água no ribeirão que foi represado para criar o grande lago artificial. O pequeno curso d’água desemboca no Rio Tibagi, onde peixes de diversas cores e tamanhos encontram mais peixes. E estes, se retrocedermos um pouco mais, no tempo e no espaço, vieram do oceano que os antigos navegadores chamavam de Mar Tenebroso.

Sente o gosto do sal e a voz das ondas; recebe o cheiro do mar, do tempo em que esta cidade em que vives agora, hoje tão distante do oceano, era o próprio oceano. E mergulha, mergulha sem medo nas águas e nas rochas que assassinaram multidões de incautos, aqueles que não tiveram medo do mar. Porque agora tens guelras e podes respirar distante dos predadores. Viaja até o momento em que nenhuma ave do céu possa ser vista; até o lugar em que a esperança das praias já não mais existe.

Então perceberás que não há mais volta; e que a sua morada é um deserto ao avesso, habitado por monstros não catalogados pelo homem das academias universitárias. Sentirás a majestosa solidão da noite no oceano e ouvirás vozes incompreensíveis até pelos cegos poliglotas da Biblioteca de Babel. Ali nas trevas que nem a baleia, nem o tubarão ousam explorar.

Olharás para baixo – e não verás o chão do mar. A alcateia do vento uiva em sol menor, mas tu não escutarás esse concerto. Tua atenção se voltará completamente para as cordilheiras internas, os Everests e Aconcáguas submersos na escuridão, entre as criaturas disformes que o Criador guardou no fundo do mar para que sua feiura não incomodasse o sonho das crianças e das mulheres grávidas.

E nada disso terá nome, nem idioma, nem consciência da morte. Tudo desaparece sem deixar um só rastro na memória cambriana. Bactérias e demais microrganismos formam colônias indecisas entre o reino vegetal e mineral; são terras sem fé, nem lei, nem rei.

Na hora sem hora em que teu desalento for tão grande quanto a morte, ou até pior do que ela, surgirá sem explicação a rua em que te encontras agora, ao ler estas palavras. E nesta rua, a tua casa. E nesta casa, teus entes amados, inclusive os que partiram, cercados por anjos e santos de todos os tempos. Sons de música e oração. Risos e vento nas folhas — e uma cruz, uma pomba, uma luz. Terás chegado ao Lugar, meu amigo. Enfim, és livre.