Walter Benjamin (1892-1940), um dos mais influentes pensadores do mundo contemporâneo, escreveu, em 1900, “Infância berlinense”, um livro de memórias até então atípico. Ao rememorar sua trajetória de vida na velha capital alemã, Benjamin faz um exercício riquíssimo de história social. Assim, aquilo que parece ser uma narrativa intimista é, na verdade, o retrato de um tempo, a conversão de um “eu” em “muitos” sujeitos. O grande intelectual alemão ensina, nesses termos, que palavras privadas em espaços públicos só têm sentido quando servem para refletir sobre algo maior, referente à vida de comunidades e culturas em vasta proporção.

Imagem ilustrativa da imagem O sol é para todos.
| Foto: iStock

Os escritos de Benjamin certamente inspiraram o sociólogo Norbert Elias (1897-1990), nascido no antigo território polonês da Breslávia. Elias, ao trabalhar os conceitos de “envolvimento” e “alienação”, afirmava que, para conhecer de fato objetos e realidades sob análise, os observadores devem elaborar um delicado equilíbrio entre paixão e indiferença: é preciso, nesse sentido, estar afeiçoado àquilo que se quer conhecer e revelar, ao mesmo tempo que se faz fundamental certo distanciamento crítico em relação a indivíduos, grupos ou universos estudados O objetivo disso é preservar as verdades empíricas inerentes aos fatos.

Cabem tão somente a oportunistas o elogio fácil, a defesa acrítica e a militância que se alimenta do ódio e do autoengano. Mais do que isso: enquanto nas memórias as ideias tecem relações sociais e definem espaços de convivência, nas confissões ególatras só há espaço para ressentimento e vitimização. Os reacionários são ases nessa modalidade da vida: ao dizerem-se “salvos”, necessitam condenar os supostos responsáveis pelo seu antigo mal-estar ao inferno. Aliás, toda vez que falam no demônio, em sentido real ou figurado, acabam revelando o que existe dentro deles, na devastação a céu aberto que são seus corpos e almas.

Um olhar de desdém sobre inimigos reais ou imaginários cria público para ególatras. Mais do que reflexividade, suas falas recheadas de impiedosa autoanálise são uma espécie de trampolim para que outros possam ser atacados. Quem não se basta e precisa culpar o próprio passado para se aguentar de pé no presente vive de desenhar caricaturas de seus fictícios algozes ou daquilo que, só em sua demência, representaria o “mal do mundo”. Um “direitista” que um dia se acreditou “de esquerda” (essas conversões escancaram apenas o que sempre se foi, nunca o que se pensa ter sido) e lança sobre essa antiga condição pragas e dores de arrependimento quer aplausos e confetes que rechacem a memória histórica e espelhem sua “competência investigativa”. Trata-se do tipo de sujeito que “ama” de segunda mão, por intermediários; é, portanto, incapaz de amar e indigno de ser amado genuinamente.

Um juízo crítico sobre o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), por exemplo, deve partir de algumas evidências empíricas: trata-se de um conjunto de pessoas (intelectuais, estudantes e trabalhadores) que crê na forma partidária como instrumento do fazer político; são militantes da vida, que, para muito além da conquista do poder, desejam debater sobre políticas públicas, a questão ambiental, os estudos de gênero, os dramas da educação, da cultura, da saúde e da ciência num país que dá as costas para a inteligência, a diversidade e a sensibilidade; formam uma agremiação que não visita as elites com um pires na mão, esmolando rápidas e ilusórias respostas a problemas de enorme complexidade – é por isso que o PSOL se constitui como um partido de quadros, não de oportunistas; apresenta-se como uma alternativa de pensamento e de atuação no mundo público, não como uma verdade revelada e hipócrita. (Nesse último quesito, o partido de Marielle Franco opõe-se aos detentores do poder no Brasil: ele não persegue “ideologias” para defender, sorrateiramente, uma... IDEOLOGIA.)

Discordando ou não de suas bandeiras, o PSOL inspira porque é feito de gente que luta e, na trama das enormes contradições do mundo e de si mesma, defende a democracia numa época em que seu túmulo vem sendo fabricado por mentalidades autoritárias e covardes, que confundem a livre opinião com a frenética dança de seus demônios internos.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]