Quando estudava na Unicamp, um dos meus passatempos preferidos era visitar o acervo de Hilda Hilst no CEDAE – Centro de Documentação Alexandre Eulálio. Ficava revirando as suas memórias. Podia ter começado pelos livros, cartas ou fotografias. Mas comecei pelas suas Anotações de Sonhos, uma pasta pequena, sem muitos escritos, que me aproximou da intimidade de uma das maiores escritoras do Brasil. Nada mais íntimo do que penetrar, de algum modo, no inconsciente das pessoas.

A primeira impressão é que ela começou a anotar seus sonhos na década de 1970, embora eu ainda não tenha visto tudo de Hilda enquanto dormia. Além da pasta que selecionei, havia mais anotações de sonhos numa agenda.

É muito delicado visitar os sonhos de alguém. É preciso entrar devagar num lugar em que até o absurdo faz sentido. Os sonhos de Hilda valem tanto quanto os hieróglifos de uma antiga civilização. Sua letra precisa e delicada, me confundiu às vezes, quando não consegui, por exemplo, ler a palavra 'meiguice'. A meiguice de Hilda era um hieróglifo e pedi a ajuda de um arquivista competente, Cristiano Diniz, que organizou o acervo e decifrou o que não consegui ler.

Ainda hoje me interessa tudo o que cerca a autora. Sem dúvida, uma das grandes poetas do Brasil. Em seus livros há um conteúdo tão intenso que os abro quase como quem participa de um rito, lendo com os olhos da alma.

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. | Foto: Marco Jacobsen

“Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão” (1974) é um dos livros mais bonitos de HH, tão bonito quanto alguns de seus sonhos. Um diálogo entre a escrita livre e a tradição lírica, na forma “de canção de amigo” e gênero clássico. Nele, a poeta canta a ausência do amigo sempre esquivo, ocupado com os negócios. Então, ela canta e, encantada com seu próprio canto, cria um elogio ao amor.

Conta-se que Carlos Drummond de Andrade considerava este o melhor livro de Hilda e comentou com ela: “Você não dormiu com este homem.” Talvez o poeta considerasse que a força dos versos devia-se a esta lacuna, a esta ausência transformada num êxtase de palavras. Acontece.

Na orelha do livro, porém, fica claro que não há nenhum 'happy ending': “Ao fim o amado esquivo se dissolve ou se confunde com o homem morno, com o predador político, inimigo caricato da vida e da arte.”

O que não deixa de ser um ato de violência que, assim mesmo, reacende o espectro da paixão. Na aflição da espera amorosa, ao contrário de Penélope, a poeta moderna remete à desolação dos tempos, não à esperança. Mas nem por isso, os versos deixam de ser lindos. A dedicatória que ela faz é um registro que aviva a memória para sempre, ainda que alguns amores sejam quase míticos. Hilda dedica o livro a “AM.N. porque ele existe.”

X

Não é apenas um vago, modulado sentimento

O que me faz cantar enormemente

A memória de nós. É mais. É como um sopro

De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso

É como se a despedida se fizesse o gozo

De saber

Que há no teu todo e no meu, um espaço

Oloroso, onde não vive o adeus

Não é apenas vaidade de querer

Que aos cinquenta

Tua alma e teu corpo se enterneçam

Da graça, da justeza do poema. É mais.

E por isso perdoa todo este amor de mim.

E me perdoa de ti a indiferença.