Os preconceitos – e especialmente as consequências dos preconceitos que tomam a forma de marginalizações e discriminações – são vertentes desastrosas da condição humana que deram origem a horrendos massacres e implacáveis perseguições, manchando a história da humanidade com sangue e luto. De atrasos e exclusões sociais a paranoicas caças às bruxas (fogueira incluída), os preconceitos, filhos legítimos da ignorância, mostraram ao longo dos séculos a que nível de abjeçao nós humanos podemos cair, arrastados pela suposta fé em crenças apoiadas mais em mitos do que na realidade.

Escravizar o negro e, a partir daí julgá-lo como inferior, invocando pouco desenvolvimento intelectual e poucas luzes, além de mostrá-lo como um ser ridículo – ideia que o cinema americano dos anos 1930, 40 e 50 cristalizou –, foi um dos temas que ainda hoje mais provocam discussões e controvérsias. No período do cinema mudo, os negros eram figuras assustadoras que passaram a ser retratadas como estupradores inatos, bandos de degenerados, merecedores de linchamento pela Ku Klux Klan como mostrado em “O Nascimento de uma Nação” (1915), o mais eloquente (apesar de mudo...) testemunho cinematográfico racista daquele início de século.

Com o advento do sonoro e a possibilidade de difundir o jazz, para o qual os negros aportaram todo seu talento e musicalidade, a imagem do homem de cor, eufemismo para encobrir o depreciativo nigger (ainda pior que black), foi associada à dança devido à “qualidade acrobática que esses seres têm de semelhança com o macaco”, como os racistas daquela (?) época diziam. O enredo de comédias, dramas e policiais foram então enxertados mais ou menos à força por palhaçadas musicais. Obviamente, habilidades extraordinárias como as do trompetista Louis Armstrong, do cantor e performático Cab Calloway e da cantora lirica Marian Anderson, entre outros que alcançaram mais fama, eram incontestáveis e difundiram sua arte pelo rádio, teatro e discos, transcendendo o lugar decorativo que Hollywood vinha dando a eles.

Os homens negros precisavam ser criados – fieis, respeitosos ou idiotizados – carregadores de malas atônitos de olhos esbugalhados, ou no máximo policiais de muito baixo nível. Às mulheres negras cabia o papel de criada maternal tipo Mammy de “...E o Vento Levou” ou a aparlemada Prissy (Butterfly McQueen), escrava de Scarlett O’Hara/Vivien Leigh no mesmo filme (recentemente banido pelo Netflix de sua lista de clássicos, em ingênua e emocionada retaliação no episódio George Floyd). Podiam ainda ser cantoras de cabaré e, com o Código Hays de Censura da época, espécie de prostitutas de segunda categoria. Os artistas negros bem que tentaram remediar essa pequena e nada autêntica tipificação, agrupando-se em instituições e movimentos de reivindicação social que, devido a outro preconceito – o político –, foram logo perseguidos pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, nome insano dado por um grupo de racistas fanáticos a um tribunal que negava direito à liberdade individual justamente no país pioneiro na igualdade dos direitos, sancionados em 1776 em declaração de nítida inspiração iluminista.

Antiamericano, alguém que pediu para ser tratado como ser humano além de sua afiliação política, religiosa ou racial ?!? Claro, argumentou-se que o comunismo era a negação dessas liberdades e, portanto, quem defendesse essa ideologia seria considerado inimigo nacional. Mas ninguém ignora como e por quanto tempo se confundiu progressismo, liberalismo, tolerância e socialismo com o ditatorial e infame comunismo estalinista. E os negros? Foram culpados por apoiar e buscar proteção nesses grupos, e muitos foram banidos de cena e censurados pelo macartismo.

Grave problema e sinuoso dilema que a grande atriz e cantora Hattie McDaniel (primeira ganhadora negra do Oscar – e retratada com simpática e reparadora indulgência na recente série “Hollywood”) assim resumiu: “Em Hollywood ele sempre me transformam em empregada doméstica. Dificilmente me deixam ser cantora e me relegam ao ‘set’ cozinha para dizer piadas ou lacrimejar melodramaticamente, me pagando por isso 200 dólares por semana. Na vida real tenho que lavar louça de verdade, morrer de calor perto dos fogões dos quais tenho que remover gordura de verdade da comida dos brancos. E por isso me pagam cinco dólares por semana. Assim, prefiro ser uma empregada de cinema”.

Hattie teve seu Oscar. Outros, uma dura censura ou um castigo que nunca souberam compreender, e nem poderim. Mas muitos, ao longo do tempo, mantém intensa luta para conseguir que os negros chegassem hoje a ocupar cargo importantes: magistrados, executivos e profissionais liberais de sucesso, artistas de renome, congressistas e até presidente. Valeu a dura pena. Mas ainda há mais por fazer. Muito mais.