Imagem ilustrativa da imagem Todo o Mundo e Ninguém
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Um dos meus sete leitores, possivelmente o decano entre eles, chama-se José Ruivo da Silva. Português de nascimento, médico cirurgião, intelectual católico e membro da Academia de Letras de Londrina, Dr. José Ruivo é uma personalidade fascinante. No último dia 12, durante um encontro do Clube do Livro (quando lemos o "Fausto", de Goethe), esse meu dileto amigo português presenteou-me com um ensaio em 14 folhas de almaço, cuidadosamente preenchidas em letra cursiva e português corretíssimo. Para minha grande honra, o texto foi inspirado na crônica "Ninguém morreu no Brasil", publicada nesta Avenida Paraná há cerca de um mês.

Do alto de seus 88 anos e dono de uma vasta cultura literária, Dr. Ruivo lembrou-se, ao ler a crônica, de uma famosa passagem do "Auto da Lusitânia", de Gil Vicente, o grande gênio do teatro português, que viveu no século XVI. A peça, escrita no ano de 1532, mostra a certa altura uma cena que envolve uma dupla de demônios (Belzebu e Dinato) que conversam com os personagens chamados Todo o Mundo e Ninguém. O primeiro representa a ganância, o egoísmo e o materialismo. O segundo simboliza a humildade, a generosidade e o espírito.

Belzebu e Dinato interrogam Todo o Mundo e Ninguém sobre os grandes temas da vida. E as conclusões a que chegam sobre a humanidade são desalentadoras: Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade; Todo o Mundo quer ser louvado e Ninguém, repreendido; Todo o Mundo busca dinheiro e Ninguém, consciência; Todo o Mundo quer honra e Ninguém, Virtude.

Dr. Ruivo comenta: "Pode haver dúvida que os homens são iguais em todos os tempos e culturas?" Todo o Mundo e Ninguém, na visão do meu sábio amigo, continuam tão atuais em nossa época quanto o eram em 1532 (especialmente se pensarmos no mundo político). O teatro de Gil Vicente, portanto, é mais uma comprovação de que as grandes obras da literatura constituem a imagem mais fidedigna das lutas que se travam no espírito humano através dos tempos.

Há, porém, uma figura essencial em outros autos vicentinos, e que caminha no sentido contrário ao de Todo o Mundo e Ninguém: trata-se do Pastor. Ele é a imagem da presença de Deus, que o autor sempre inclui em suas histórias como signo de esperança e redenção para o ser humano, como se repetisse as palavras do Salmo: "O Senhor é meu pastor, nada me faltará".

Na figura de Ninguém, que vemos na Odisseia de Homero e no teatro de Gil Vicente, Dr. José Ruivo enxerga um espelho de nós mesmos. E adverte: "O grande drama do homem moderno está em que lhe foi tirada do pensamento a ideia de Deus e do seu fim último. Aqueles que buscam na Terra uma identidade própria parecem desconhecer que o Eu completo e perfeito só se encontrará na Eternidade".

Obrigado por suas palavras, Dr. José Ruivo. Definitivamente, o sr. é Alguém.

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