Imagem ilustrativa da imagem Pobre Clarice



Na semana passada este cronista de sete leitores falava sobre os males da citação meia-boca de autores literários. O genial poeta português Fernando Pessoa é uma das vítimas habituais dessa praga muito disseminada na internet, tendo seus poemas e frases citados de maneira incompleta e enganosa, para expressar o que ele nunca pensou nem deveras sentiu. Botaram o pobre Pessoa até para defender ideologia de gênero!

Hoje quero falar sobre um outro flagelo que atinge escritores em nossa época: a citação falsa.

Nenhum de nós está livre de citar equivocadamente frases de personagens históricos ou literários. Eu mesmo já devo ter feito isso várias vezes. Atire a primeira pedra quem nunca usou uma frase de Churchill sem ter certeza de que era dele. Costuma ser um erro inofensivo: na maioria das vezes, as frases atribuídas a Churchill poderiam ser frases de Churchill.

Mas às vezes a coisa fica séria — e acaba por chegar às barras dos tribunais. É o caso do poema "Mude", erroneamente atribuído à escritora ucraniano-brasileira Clarice Lispector.

Em 2001, o tal poema foi utilizado numa propaganda televisiva que comemorava os 25 anos da montadora Fiat no Brasil. A agência responsável pelo anúncio pagou aos herdeiros uma bolada pela cessão dos direitos autorais do poema.

Acontece que o poema não é de Clarice Lispector. O verdadeiro autor se chama Edson Marques. Em 2013, Marques foi entrevistado no programa "Provocações", na TV Cultura, e teve oportunidade de esclarecer o caso. Disse ele, na ocasião:

— Já ofereci 10 mil dólares a quem provar que o poema é de Clarice e não meu.

No anúncio da Fiat, há apenas uma frase que realmente é de Clarice Lispector — a última: "Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena".

Todo o restante do poema foi escrito por Edson Marques.

Quarenta anos depois da morte da grande escritora, eu fico aqui imaginando se ela seria capaz de escrever os versos que abrem o poema: "Mude. / Mas comece devagar, / porque a direção é mais importante / que a velocidade. / Sente-se em outra cadeira, / no outro lado da mesa. / Mais tarde, mude de mesa. / Quando sair, / procure andar pelo outro lado da rua".

Já li bastante Clarice Lispector, principalmente na adolescência. Não é uma escritora fácil, nem dada a clichês. Seus romances e contos têm muito de Kafka e Beckett, autores de alta complexidade. Algumas vezes Clarice aproxima-se da genialidade; em geral, nem tanto. Mas uma coisa é certa: ela nunca publicou poemas.

Hoje admiro uma parte menos conhecida de sua obra: as crônicas. Mesmo neste gênero acessível e popular, seria mais fácil nevar em Teresina do que Clarice escrever algo parecido com "Arrume um outro emprego, / uma nova ocupação, / um trabalho mais light, / mais prazeroso, / mais digno, / mais humano".

Pobre Clarice! Pobres de nós.