Imagem ilustrativa da imagem Ouvindo os pássaros de Buchenwald
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1. Como canta bonito o passarinho aqui na Madre Leônia. Enquanto escrevo, ele canta. Ele na gaiola dele; eu na minha - que sou eu mesmo. Não pensem, vocês sete, que entendo de passarinhos feito Rubem Braga ou o meu amigo Ranulfo, que uns 20 anos atrás, quando viajamos para Minas, comprou uns apitos para imitar e atrair os bichos. Só conheço o bem-te-vi: claro, ele mesmo se apresenta! Nada sei de pássaros; só sei que a pequena ave canora da Madre Leônia jamais será manchete de jornal.

2. O escritor Jorge Semprún, sobrevivente do campo de concentração, dizia que os passarinhos fugiram da floresta de Buchenwald quando o forno crematório começou a funcionar. As aves foram embora porque não gostavam do cheiro adocicado de morte.

3. Leio o jornal na mesa do café da manhã. Assim como as aves não queriam cantar no campo nazista de Buchenwald, elas não apreciam as manchetes. É claro que há morte, solidão, terror, medo, violência, martírio, indiferença. Mas o passarinho canta bonito, evocando figuras que nunca mais vi. Figuras que encontrei apenas uma vez na vida. Figuras que sumiram na fumaça. Figuras que jamais saíram da memória. Figuras que são o que sou. Pássaros...

4. Tarde da noite, bruta fome de macarrão, no ano de 1992. Chego à República da Humaitá com umas cervejas na cabeça. No quarto dos fundos, há uma reunião de desconhecidos. A porta do quarto dá direto para a cozinha (a arquitetura da república era surrealista). Ponho o macarrão no fogo. Ao norte do prato Duralex, bússola inquebrável onde havia petiscos, está a moça. (O prato é inquebrável; a moça, não.) O rosto branco, branco, branco - mais branco que o macarrão na panela. Ela se abaixa. Cabelos pretos, pretos, pretos - mais pretos que o quintal da madrugada. Há algo de sagrado nas suas mãos transparentes. Há algo de súplica no seu nariz fino. A água do macarrão borbulha. Que fim terá levado essa ave da noite, que nunca mais vi?

5. Um bar de música sertaneja em São Paulo, no ano de 1988. Uma dupla vai de mesa em mesa oferecendo canções. Chegam à mesa vizinha, onde só está um sujeito. Jaz diante de uma porção de frango à passarinho, decorada com alface, e um copo de chope. O homem não tocou nem neste, nem naquela. Dorme de boca aberta, o pomo de Adão a encarar a dupla sertaneja. Eles tocam. Ele não acorda. Que fim, o do cara? O frango foi servido a outro cliente? E por que me lembro das alfaces, bandeirinhas de São João de uma cor só?

6. Sinto um cheiro de café torrado. Um cheiro das férias de infância, quando a gente ia para Mirandópolis. Pertinho de Mirandópolis, havia (há?) um distrito chamado Machado de Melo, onde pescávamos em um açude com tilápias, perto da máquina e do aterro de café, na fazenda da Tia Lourdes. Ao lado do açude, existia um brejo, mais adiante bambuzais e cafezais. Cheiro de fumaça e fogo, de onde veio ninguém sabe. Tomo um gole de café para espantar o sono. O passarinho canta. De onde vem a fumaça?

7. Ô, Ranulfo! Me empreste aqueles seus velhos apitos de Minas. Preciso ouvir os pássaros de Buchenwald.

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