Imagem ilustrativa da imagem O dia em que demoliram minha casa
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"Se o senhor num tá alembrado, dá licença de contar..."
(Adoniran Barbosa)
Eles chegaram numa terça-feira muito parecida com a de hoje, trazendo suas ferramentas de demolição. Quando o caminhão entrou na pracinha da Humaitá, a manhã subitamente tornou-se cinzenta. Os homens saltaram do veículo sem nenhum tipo de sentimento especial. Para eles, era apenas mais um dia de trabalho; para nós, era o fim de uma era.
Começa-se a derrubar uma casa pelo telhado. Em poucas horas, a casa já estava inteiramente sem cobertura. De dentro dos cômodos, era possível ver o céu. Mas não era o céu azul de Londrina, esse que estamos acostumados a ver; era um céu nublado e melancólico, porque a República da Humaitá, número 143, estava deixando de existir.
As primeiras paredes a ser derrubadas foram as da sala, coração de todas as nossas loucuras. Já não havia li o gigantesco sofá parecido com um monstro marinho. Ninguém sabe que fim levou a tevê Telefunken que deixou de funcionar depois do gol de Caniggia na Copa de 1990. O violão sem a corda ré perdeu todas as outras. Todos os habitantes da República haviam ido embora muitos anos antes, e agora eram gente séria, com apenas uma exceção: este cronista.
Quando começaram a trabalhar no quarto da frente — nosso antigo quartel-general —, os operários sem saber estavam destruindo uma coleção de lembranças, fantasmas e ilusões que até hoje insistem em habitar meus sonhos. As mulheres que amamos, as crianças que não deixamos nascer, as canções cujas letras esquecemos, os livros que abandonamos pela metade e outras recordações (ou seja, o que guardamos no coração) estavam sendo partidas com os tijolos que, tenho certeza, gemiam silenciosamente ao serem arrancados de uma imobilidade que parecia eterna.
A demolição da casa onde vivi por quatro anos e meio, entre 1989 e 1993, foi uma daquelas mortes que acontecem durante a vida de um homem, e das quais só escapamos por um milagre chamado ressurreição. A cozinha que dava para o quarto e o quarto que dava para a cozinha; a despensa onde certa vez li os poemas de Eliot; a varanda dos fundos onde Beto montava sua precária churrasqueira; a copa onde havia o telefone e a vitrola com os discos; a porta que o Baiano certa vez derrubou quando chegou sem chave; o pé de milho que certo dia foi plantado por Dona Santina e cresceu quase tanto quanto o pé de feijão da fábula; a janela por onde passou o raio de luz quando eu a abracei naquela manh㠗 tudo isso foi ficando para trás, e parecia pertencer agora ao infinito, a um tempo absurdo que não é medido pelos relógios, e que só Deus conhece.
E por falar em Deus, a demolição da República só não conseguiu destruir o lugar onde eu fazia minhas preces — pelo simples motivo de que eu jamais fiz uma prece na República. Só viria a fazê-la anos depois, diante de uma igreja incendiada em Mariana. Naquele lugar em ruínas, eu encontrei algo que a demolição não destruiu: minha alma.