Imagem ilustrativa da imagem Água que passarinho bebe
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Decidi passar o ano de 2018 sem beber. É bem verdade que na última década (ou seja, desde que me casei), tenho moderado bastante a minha relação com o álcool, mas senti que precisava de algum tempo distante da cerveja (porque sou essencialmente um tomador de cerveja; não tenho o mínimo paladar para uísque e vinhos finos), até para provar que não preciso dela.

Escritores americanos do século 20 tinham uma expressão para designar esse período de abstinência completa: "on the wagon". Meu 48º ano de vida será atravessado nesse vagão-restaurante em que se serve apenas, como diria Nelson Rodrigues (um clássico abstêmio), "água da bica". A água que o passarinho bebe.

Em seu magnífico comentário sobre o Sermão da Montanha, Santo Agostinho fala sobre a segunda bem-aventurança: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados". Diz o grande Doutor da Igreja: "Pranto é tristeza pela perda de coisas queridas. Os que porém se convertem a Deus perdem essas coisas queridas que os prendiam a este mundo, pois que já não se deleitam com o que antes se deleitavam; e, enquanto não se produza neles o amor das coisas eternas, são trabalhados por alguma tristeza".

É exatamente essa tristeza que venho sentindo; mas é uma tristeza cheia de esperança. Ao final do período, farei como Chesterton, e tomarei um belo caneco de cerveja gelada.
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Quando digo que o meu objetivo é escrever com o coração nas mãos, as pessoas geralmente fazem uma ideia errada do que vem a ser isso. A palavra "coração" adquiriu na modernidade a conotação romântica de sede dos sentimentos, o que não chega a ser mentira, mas é apenas parte da verdade. (Essas meias-verdades costumam ser perigosas e muitas vezes causam mais confusão do que as mentiras completas.)

O coração a que me refiro é o coração no sentido tradicional do termo: a sede da consciência. O lugar para onde confluem razão, inteligência, intuição, cultura e inclusive o sentimento. É aquilo que podemos chamar de nosso verdadeiro ser, o eu profundo a salvo das distrações e máscaras mundanas. Só este coração — e não coração puramente sentimental — está apto a conhecer a estrutura da realidade. É a ele que Jesus se refere quando diz no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus".

O Evangelho de São Marcos fala sobre um leproso que se ajoelhou diante de Jesus. Como se sabe, a lepra era mais do que uma doença nos tempos antigos: era um estigma, uma maldição. Aproximar-se de um leproso era um gesto condenado. Pois Jesus não se limita a conversar com o leproso: ele se compadece, toca-o com as próprias mãos e lhe dá a cura perfeita.

Chegamos a um tempo difícil, em que o mundo não só não acredita na cura da lepra, como deseja obrigar cada um de nós a ter orgulho da doença — ou seja, da nossa condição de pecadores. Com isso, o coração humano se fecha à estrutura da realidade, e nos negamos a receber o perdão simplesmente porque nos negamos a pedi-lo; porque o mundo acha que não precisamos dele.
Senhor, curai a lepra do meu coração.