Princípio da boa alimentação: comer todo tipo de comida, em quantidades e horas adequadas para o bom funcionamento do organismo, sentado, mastigando devagar e, de preferência, em boa companhia
Princípio da boa alimentação: comer todo tipo de comida, em quantidades e horas adequadas para o bom funcionamento do organismo, sentado, mastigando devagar e, de preferência, em boa companhia | Foto: Shutterstock



Ser saudável até que ponto? Quando o assunto é saúde alimentar, a impressão que se tem atualmente é de que existe o "certo e errado" dos alimentos, como se eles pudessem ser classificados somente como bons ou ruins para o organismo.

Todo mundo sabe que dá para substituir o suco de caixinha pelo natural, por exemplo, mas o fato é que as pessoas têm encarado a saúde alimentar com radicalismo, pautadas muitas vezes nas restrições alimentares.

É tão verdade que a ciência vem estudando um novo comportamento: a ortorexia nervosa. "São pessoas muito obcecadas pela ideia da alimentação saudável, mas com um critério de 'saudável' completamente fora da realidade", explica Marle Alvarenga, nutricionista coordenadora do Grupo Especializado em Nutrição, Transtornos Alimentares e Obesidade (Genta).

Diferente da anorexia, quando a pessoa não come por medo de engordar, e da bulimia, quando há compulsão por comer, mas logo em seguida a pessoa provoca o vômito, a ortorexia tem como princípio a ingestão de comida biologicamente pura, como foco na saúde. "Elas passam a deixar de comer tudo que tenha agrotóxico, aditivo, mas em um nível extremo. Isto é, preferem passar fome, ficar em jejum, do que ingerir algo que acham impura", completa Marle.

No comportamento ortoréxico, há descrições, por exemplo, de indivíduos que não comem nada cozido em alumínio ou teflon, aceitando somente os preparos em cerâmica e barro.

Além disso, o convívio social vai deixando de existir, uma vez que a pessoa deixa de comer fora de casa e também gasta um tempo enorme no planejamento e preparo da própria comida. Em outras palavras, é como se a comida normal causasse um medo nas pessoas, pois os alimentos passam a ser vistos apenas como nutrientes.

Marle, que também é supervisora do grupo de nutrição do Programa de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade São Paulo(Ambulim-HC-FMUSP), integrou uma equipe de pesquisadores que realizou há seis anos o estudo "Ortorexia nervosa: reflexões sobre um novo conceito".

De acordo com o texto, o quadro ainda não foi oficialmente reconhecido como um transtorno alimentar, mas discute-se o conceito, características, interações e sintomas, considerando a revisão de 21 artigos publicados desde 1997, quando a ortorexia foi inicialmente descrita pelo médico americano Steven Bratman.

"É importante esclarecer que ela ainda não é um diagnóstico, pois não é reconhecida como uma doença, um transtorno alimentar. Então, definimos a ortorexia como um comportamento alimentar disfuncional", destaca.

Para considerar o problema, algumas características são observadas e o indivíduo, então, deve ter um prejuízo físico e/ou social importante. "É claro que a mídia tem um influência muito grande, mas a pessoa precisa ter um determinado perfil psiquiátrico para desenvolvê-la, ou seja, uma tendência maior nesse sentido. E, ao contrário dos casos de anorexia, bulimia e compulsão, a ortorexia não tem tratamento específico", esclarece.

De acordo com Marle, um psiquiatra vai ser necessário se houver um Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) que piora a condição e consequentemente, traz prejuízos intensos para a pessoa.

"Já o acompanhamento nutricional é importante, desde que o profissional seja especializado e tenha experiência, pois hoje muitos têm uma visão complicada de nutrição, isto é, que não é preconizada por nenhuma diretriz", completa.

Imagem ilustrativa da imagem A obsessão em comer 'saudável'



POLÊMICA

Quem esteve no centro das polêmicas virtuais recentemente foi a apresentadora do programa "Cozinha Prática", Rita Lobo. No Twitter, ela repercutiu uma mensagem pedindo que ela ensine a fazer uma maionese com óleo de coco e iogurte, em vez de gema e óleo. A apresentadora respondeu negativamente em primeiro lugar "porque não é maionese" e em segundo, "trate seu distúrbio alimentar".

A publicação ganhou tamanha proporção que incitou o debate sobre comportamento alimentar. Em uma entrevista divulgada na internet, a apresentadora diz que a mania de alimentação saudável está levando as pessoas a fazerem dietas de restrição, se esquecendo do que realmente é benéfico à saúde.

Rita Lobo enfatiza que segue as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do "Guia Alimentar para a População Brasileira", documento oficial do Ministério da Saúde. Ela inclusive mantém um canal no YouTube em parceria com Carlos Monteiro, coordenador do Guia.

O documento aponta que "os alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, são a base para uma alimentação nutricionalmente balanceada e saborosa."

Além disso, as características do modo de comer e as dimensões culturais e sociais das práticas alimentares são tidos como aspectos que influenciam a saúde e o bem-estar, ou seja, "a alimentação é mais do que ingestão de nutrientes".

Comida como fonte de prazer

Nutricionista em Londrina, Valéria Mortara é do tipo que enxerga o alimento como uma fonte de prazer. Em suas oficinas, ensina a preparar comida do dia a dia, até mesmo o básico arroz e feijão, pois ela mesmo diz que "é o que as pessoas precisam".

Sempre de olho nas polêmicas das redes sociais no que diz respeito à nutrição, Valeria cita que comportamentos estão levando à hospitalização da vida, em que o correto é viver em um mundo desinfetado e comer uma comida sem graça, como nos hospitais. "É uma comida com objetivo e que não te dá prazer", acrescenta.

Valéria comenta que para muitas pessoas a palavra saúde é sinônimo de ausência de doenças, enquanto que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera um conjunto entre bem-estar físico, emocional e econômico.

"Então, quando você pensa em alimentação saudável focando nessa definição de ausência de doenças, você vai comer nutrientes. Agora, se você pensa no outro âmbito, você vai comer com sua família, vai dar risada, vai comer uma comida que seu bolso permite", salienta.

O princípio da boa alimentação, segundo Valeria, não é focar no quê ou quanto se come. É comer todo tipo de comida, em quantidades e horas adequadas para o bom funcionamento do organismo, sentado, mastigando devagar e, de preferência, em boa companhia.

"A alimentação saudável é aquela que te faz bem, cabe no seu bolso, que tem história, que traz conforto em todos os sentidos e não te causa problemas de saúde. É possível comer no dia a dia, de forma saudável e sem radicalismo", aponta.

Sobre o forte movimento do veganismo e vegetarianismo, Valeria revela que, de fato, temos comido muito mais carne do que é necessário, e esclarece que essa "onda" é mais um posicionamento político em relação ao uso de outros animais em benefício humano, do que uma preocupação com a própria saúde. "Acho super legal se for na medida correta", conclui.

'Estamos em um nível muito chato'

A londrinense Munira Chinezi sempre travou batalhas quando o assunto envolve a alimentação. Ela já sofreu com a obesidade, fez uma cirurgia de redução de estômago, lutou contra a bulimia e fez todas as loucuras propostas pelas dietas da moda.

Hoje, estudante de Gastronomia e cozinheira em um buffet da cidade, Munira continua batendo de frente mas contra o radicalismo alimentar, porque como ela mesmo diz, passou a enxergar o alimento como afeto, conforto, relaxamento e festividade.

"O prejuízo ao meu ver é separar o prazer da comida. Eu me envolvo nas discussões que surgem nas redes sociais e compartilho informações porque estamos em um nível muito chato, em que você diz que vai comer uma massa e a pessoa já comenta assustada que é muito carboidrato", observa.

Munira não sofreu com a ortorexia nervosa, mas avalia que o maior problema desse comportamento "é a impressão de que se está fazendo algo certo. De que o certo é você mudar receitas, excluir certos tipos de alimentos, isto é, uma divisão do que é bom e o que é mau. Com essa visão apenas dos nutrientes, o alimento no final do preparo vai ser um composto, como uma receita médica", diz.

Da própria experiência, Munira sabe da importância de se evitar os excessos. "Nosso corpo já sente naturalmente e nos diz até onde está bom. Comida é muito além dos macronutrientes e vitaminas que compõem quimicamente os alimentos", conclui.