"Fiquei sem voz e só ouvia meu filho gritando no portão: ‘meu pai matou minha mãe!", conta a mulher de 59 anos que não pode se identificar por motivos de segurança
"Fiquei sem voz e só ouvia meu filho gritando no portão: ‘meu pai matou minha mãe!", conta a mulher de 59 anos que não pode se identificar por motivos de segurança | Foto: Anderson Coelho


Quase 40% das mulheres vitimadas pela violência doméstica no Brasil sofrem agressões diárias e a grande maioria é agredida mais de uma vez por mês. Os dados, do Balanço 2015 do serviço telefônico "Ligue 180", destinado a receber denúncias de violência doméstica, indicam que as mulheres ainda encontram muita dificuldade para superar o ciclo de agressões a que são submetidas.
Documento elaborado pelo Observatório da Mulher Contra a Violência, cujo portal foi lançado na semana passada pelo Senado Federal, identifica que a violência costuma ocorrer em três fases. A primeira delas é a construção da tensão no relacionamento, quando acontecem incidentes menores, como agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição de objeto e violência psicológica, entre outros. Em seguida, há a fase crítica, em que os incidentes mais graves ocorrem, como espancamentos, estupros e eventualmente homicídios. Já a terceira fase seria marcada pelo arrependimento, juras de paixão e promessas de regeneração. "No contexto em que a violência doméstica ocorre em ciclos, que muitas vezes se repetem, numa espiral de agravamento das violências perpetradas, a ocorrência do homicídio pode se dar não como um ato premeditado de eliminação do cônjuge, mas como resultante de uma crise, em que uma agressão mais severa redundou inesperadamente na morte do outro", atesta o estudo.
Essa situação foi vivida durante 15 anos por uma mulher de 59 anos que não pode se identificar por motivos de segurança. Casada por 25 anos com um homem que, numa crise, chegou a levá-la ao hospital com um hematoma cerebral depois de uma "surra", ela demorou uma década e meia para conseguir, nas palavras da própria vítima, "voltar a sentir a vida".
O relacionamento do casal, segunda ela, foi normal durante os primeiros dez anos. Os problemas começaram quando o então marido teve perdas familiares e passou a descontar nela toda a frustração com a própria vida. O pior ocorreu em 2006, quando a Lei Maria da Penha começava a ser implementada. "Eu estava em casa e ele me bateu até eu desmaiar. É um homem grande e forte que me chutou mesmo quando eu já estava caída. Fiquei sem voz e só ouvia meu filho gritando no portão: 'meu pai matou minha mãe!"
Apesar do risco de vida, ninguém apareceu para ajudar porque todos temiam o agressor. O próprio marido pediu ajuda a um vizinho e a levou a um hospital, onde o médico desconfiou da história contada pelo agressor que relatou ter sido um tombo. "O médico achou que não fazia sentido, mas me liberou para voltar para casa com ele", conta. Em casa, porém, a vítima não parou de sentir dor. "Liguei para o meu irmão que teve de entrar escondido para me levar a outro hospital", conta ela, que levou três meses para se recuperar das agressões e acabou perdendo o emprego.
O que se seguiu depois foram anos de tortura psicológica. Ela continuou vivendo na mesma casa que ele, mas passou a dormir em outro quarto, trancando a porta todas as noites. "Fazia o serviço doméstico correndo porque tinha medo de encontrar com ele, sentia um verdadeiro pânico", conta. Pessoas próximas, ao invés de orientarem-na a procurar ajuda, diziam que ela devia voltar a viver bem com o marido. "Foi só depois de três anos que finalmente tive coragem de denunciar", recorda a mulher, que entrou com uma representação criminal e conseguiu uma medida protetiva que, na época, já era garantida pela Lei Maria da Penha. "Um oficial de justiça tirou ele da minha casa e, até hoje, tem uma ordem judicial para que não se aproxime de mim. No início foi muito difícil, mas quando deixei de sentir medo, voltei a viver", agradece.
Ela conta que só queria ser tratada com respeito e viver com liberdade, mas recebeu violência e tortura psicológica. "Tudo o que eu fazia era ruim, ele saia, ia para festas e churrascos e jamais me levava. Agora eu faço o que quero. Espero que ele seja feliz, mas bem longe de mim", diz a vítima, que tem na ex-modelo Luiza Brunet um "modelo" de mulher corajosa. "Foi muito importante ela admitir a violência, vai dar muita força para que outras mulheres tenham coragem de denunciar", acredita.
A assistente social Gisele Wiezel, do Centro de Atendimento à Mulher (CAM) de Londrina, explica que o município tem desde 2004 uma rede de enfrentamento à violência contra a mulher. A promulgação da Lei Maria da Penha, segundo ela, trouxe mecanismos que facilitam a proteção das vítimas. "A lei ajudou a articular a rede", avalia, destacando que os serviços do município atendem mulheres de todas as idades e classes sociais, inclusive idosas agredidas por filhos.