Rogério da Silva, 75 anos: "A gente patrulhava uma extensão de 21 quilômetros no Deserto de Sinai, eu chegava a andar 15 quilômetros à pé durante a noite"
Rogério da Silva, 75 anos: "A gente patrulhava uma extensão de 21 quilômetros no Deserto de Sinai, eu chegava a andar 15 quilômetros à pé durante a noite" | Foto: Saulo Ohara



Eles deixaram o Brasil rumo à conflituosa Faixa de Gaza – no Oriente Médio - motivados pelo espírito aventureiro e pela vontade de conhecer novas paisagens. Nas décadas de 50 e 60, voluntários brasileiros da primeira Unef (Força de Emergência das Nações Unidas) integraram o Batalhão Suez que, durante anos, atuou na fronteira entre Israel e Egito para manter a paz na região.

Dois moradores de Londrina participaram da missão e guardam na memória as lembranças das patrulhas no deserto, o barulho dos ataques aéreos e a diversidade cultural dos povos com quem conviveram. Pelos serviços prestados em nome da manutenção da paz mundial, todos os combatentes foram agraciados em 1988 com o Prêmio Nobel da Paz.

Morador da zona norte de Londrina, o ex-ferroviário Rogério da Silva, 75, desembarcou com as tropas da ONU (Organização das Nações Unidas) no canal de Suez, no mar Mediterrâneo, em dezembro de 1961. Na época, ele morava em Ponta Grossa e tinha acabado de servir o exército no Rio de Janeiro, onde prestou serviços no Batalhão da Guarda Presidencial. "Cuidei da primeira dama Maria Tereza Goulart e dos filhos dela", conta.

Logo após encerrar o serviço militar obrigatório, ele se alistou para integrar as forças da ONU. "Sempre fui muito curioso, queria conhecer o mundo", explica Silva, que não à toa se formou em Geografia quando retornou da missão. O plano deu certo. Ele passou por Portugal, Espanha, França, Itália, Jordânia, Grécia, Líbano, Síria e Egito, além da própria Faixa de Gaza. "A gente patrulhava uma extensão de 21 quilômetros no Deserto de Sinai. O objetivo era impedir que palestinos e israelenses se encontrassem. Eu chegava a andar 15 quilômetros à pé durante a noite", conta.

Urias Alves, 82 anos: "Colaborei para evitar mais conflitos, pois nossa missão era evitar que palestinos e judeus se encontrassem"
Urias Alves, 82 anos: "Colaborei para evitar mais conflitos, pois nossa missão era evitar que palestinos e judeus se encontrassem" | Foto: Gina Mardones



Das lembranças mais impressionantes, ele cita os beduínos armados com granadas presas ao corpo caminhando pelo deserto e as chocantes diferenças de acesso a recursos e tecnologias entre os dois povos. "Israel era desenvolvido, usava irrigação na agricultura. Já os palestinos aravam o deserto com camelos e pedaços de pau. Era como observar culturas com uma diferença de mil e quinhentos anos ao mesmo tempo", exemplifica.

Tiros de metralhadora e granadas explodindo faziam parte dos ruídos que vez ou outra quebravam o silêncio do deserto. Os patrulheiros não podiam sair do caminho delimitado para eles por causa das minas cheias de explosivos. "Vi adultos e crianças pisarem em minas que explodiram", lamenta.


Apesar dos riscos, Silva garante que a maior arma usada por ele no período em que esteve no Oriente Médio foi o diálogo. "A gente tinha que convencer as pessoas a não ultrapassarem a fronteira, inclusive guerrilheiros armados. Era tudo através da conversa, o objetivo maior era evitar conflitos. Aprendi muito sobre como lidar com o ser humano", conta ele, que por isso sente muito orgulho da medalha que o condecorou como Nobel da Paz. "Tenho certeza que salvei muitas vidas", afirma.

De volta ao Brasil, Silva passou em um concurso e veio trabalhar como ferroviário em Londrina, na antiga estação onde hoje funciona o Museu Histórico. Outro motivo para orgulhar-se é o fato de ter sido o primeiro ferroviário do município a passar no vestibular da UEL (Universidade Estadual de Londrina), onde cursou geografia. "Não escolhi o curso à toa. Sempre gostei de viajar", conta ele, que até hoje faz questão de participar dos eventos patrióticos que exaltam os feitos dos soldados brasileiros.

Imagem ilustrativa da imagem Memórias de quem enfrentou o risco



FUGINDO DO TÉDIO
O aposentado Urias Alves, 82, morava em Apucarana quando foi designado para fazer a guarda do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, durante o serviço militar obrigatório, exatamente um ano antes de Getúlio Vargas se suicidar no local. Ao voltar para Apucarana, ele conta que se entediou com o trabalho monótono de vendedor de tecidos. "Soube que o exército estava recrutando e achei que era um bom emprego", conta. Ele ficou 14 meses no Oriente Médio e não se arrependeu da aventura. "Conheci muitos lugares e colaborei para evitar mais conflitos, pois nossa missão era evitar que palestinos e judeus se encontrassem", diz.

O isolamento dos acampamentos, onde dormiam em barracas, patrulhavam o deserto à noite e ficavam sem encontrar pessoas diferentes por muitas semanas, foi compensado pela oportunidade de conhecer lugares como Egito, Líbano e Jerusalém. "Beirute foi o lugar que mais gostei, mas também fiquei encantado com as pirâmides", diz.

Apesar das bombas, ele recorda que o maior medo era das cobras e escorpiões, cuja picada doía por mais de 24 horas. "Tinha que tomar muito cuidado com os coturnos", lembra ele, que também sentia muito sono nas longas patrulhas pelo deserto. "Cheguei a deitar na areia para descansar, mas nunca dormi", diverte-se ele, que ao retornar ao Brasil casou-se com Aimê dos Santos, a namorada que o esperou até o fim da missão. Parte do dinheiro recebido na missão foi investido em uma papelaria que responde pelo nome de um dos maiores ícones da arquitetura de Londrina. Por 51 anos, Alves e a esposa foram proprietários da Papelaria Central, no Calçadão, no térreo do edifício que ainda hoje abriga o conhecido "relojão da Papelaria Central".

Tantos anos depois da baixa, ele ainda faz questão de participar das cerimônias cívicas e não esconde o orgulho de ter recebido o Prêmio Nobel da Paz. "Gosto dos desfiles, quando as pessoas me aplaudem. Os oficiais dos palanques fazem continência para mim, me sinto orgulhoso", diverte-se.