A faxineira Cleusa Furtado ainda guarda o atestado de óbito do filho
A faxineira Cleusa Furtado ainda guarda o atestado de óbito do filho | Foto: Anderson Coelho


O clima de alegria da véspera do Natal de 1992 em nada combinava com o momento vivido pela faxineira Cleusa Maria Allian Furtado, com 23 anos à época. Enquanto a maioria das casas do Conjunto Aquiles Stenghel, na zona norte de Londrina, estava enfeitada, a dela era só tristeza. Na madrugada do dia 24 de dezembro, ela se submeteu a um aborto. Estava grávida de seis meses e havia descoberto dois meses antes que o bebê que carregava era anencéfalo. "O médico me explicou que era uma criança sem cérebro. Naquele momento eu entrei em choque", lembra.

Aconselhada pelos médicos, Cleusa procurou a Justiça para interromper a gravidez. "Não queria prolongar o sofrimento. Antes mesmo dos exames confirmarem, já desconfiava que tinha algo de errado. A gente que é mãe pressente", conta. Após dois meses de trâmites jurídicos, ela enfim conseguiu a autorização judicial. O caso de Cleusa foi o segundo aborto por anencefalia autorizado por decisão judicial no País. Somente 20 anos depois, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiria pela liberação de aborto de fetos anencéfalos. Atualmente, além da anencefalia, só são permitidos abortos em casos de risco à vida da mãe e de gravidez decorrente de estupro.

A decisão foi do juiz da 2ª Vara Criminal de Londrina à época, Miguel Kfouri Neto, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, em Curitiba. Após 25 anos, ele se recorda do caso. "Foi um caso de muita repercussão. A imprensa tratou o caso como se fosse o primeiro do Brasil. Só anos depois se descobriu que em 1989 já havia se registrado um caso em Rondônia", comenta. Antes de proferir a decisão, Kfouri Neto consultou a família. "Em casa somos todos muito católicos. Conversei com minha esposa e meus três filhos, todos advogados e religiosos. Ao tomarem ciência do caso, todos concordaram com a interrupção da gravidez", diz.
O desembargador destaca, no entanto, que a decisão neste caso não poderia ser norteada pela fé. Ele também demonstrou surpresa pela posição da Igreja, que na época não se manifestou. "O Clero de Londrina era mais progressista e não fez objeção. O mesmo não aconteceu em outras cidades, quando, posteriormente, colegas juízes também autorizaram o aborto de anencéfalos e chegaram a ser excomungados", compara.

Sobre a discussão da liberação do aborto até o terceiro mês de gestação, Kfouri Neto se posiciona contra. "É uma situação bem diferente e, pessoalmente, sou contra." No entanto, ela cita casos que considera piores que o aborto. "Recentemente uma mãe foi presa no Sudoeste por ter matado o filho após o parto. Quando foram investigar, descobriu-se que ela é suspeita de matar outros dois filhos. Em um caso desses, é de se ponderar se o aborto não seria melhor", opina.

Na próxima quarta-feira (12), a liberação do aborto de fetos anencéfalos pelo STF completa cinco anos. Na prática, a mãe que desejar interromper a gravidez do feto com a anomalia não precisa mais recorrer à Justiça. Entre 2012 e 2016 foram registrados 8.115 procedimentos de abortos legais, incluindo risco à mãe e decorrentes de estupro. A média de abortos legais, de 1,6 mil ao ano, não aumentou após a decisão do STF. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o quarto país com maior prevalência de nascimentos de bebês com anencefalia. A incidência é de um caso para cada 700 nascimentos.(C.F.)